Martha Mendonça
Qual é o verdadeiro impacto das telenovelas nos lares brasileiros? Segundo dois estudos recentes do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), as tramas exibidas na TV nos últimos 40 anos vêm moldando as famílias em pelo menos dois aspectos: menos filhos e mais divórcios. As pesquisas, coordenadas pelo economista Alberto Chong, analisaram o conteúdo de 115 novelas transmitidas pela TV Globo entre 1965 e 1999 nos horários das 19 horas e das 20 horas. Nessa amostragem, 62% das principais personagens femininas não tinham filhos e 26% delas eram infiéis a seus parceiros – o que suavizou o tabu do adultério. Para Chong, a telenovela é um excelente canal de difusão de programas sociais, como prevenção à aids e direitos das minorias. Ele deu a seguinte entrevista a ÉPOCA.
ENTREVISTA – ALBERTO CHONG
QUEM É
Economista nascido em Lima, no Peru. Tem 45 anos e mora em Washington, nos Estados Unidos
O QUE FEZ
Desde 2000, trabalha como pesquisador do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
O QUE PUBLICOU
As pesquisas Novelas e fertilidade: evidências do Brasil, com Suzanne Duryea, do BID; e Televisão e divórcio: evidências de novelas brasileiras, em parceria com Eliana Ferrara, economista da Bocconi University
ÉPOCA – De que forma as telenovelas influenciaram a sociedade brasileira?
Alberto Chong – Durante o período da ditadura, os autores já viam nas novelas a oportunidade de lutar contra o sistema, apresentando novas ideias e valores. Há, de forma recorrente, a crítica à religião, ao machismo e ao consumo de luxo e a ideia de que a riqueza e o poder não trazem felicidade. A família está no centro dessas transformações. As novelas são um instrumento muito poderoso na formação de um modelo bastante específico de família: branca, saudável, urbana, bonita, consumista – e pequena.
ÉPOCA – Vem daí a explicação para a influência das novelas na queda da taxa de fertilidade?
Chong – Sim. A família pequena é uma imposição da produção, que tem limitações de elenco. Para que a história aconteça, são necessários pelo menos cinco ou seis núcleos. Então nenhum pode ser grande demais. Por um tempo essa família tão reduzida era irreal. Com o tempo, porém, a repetida exposição desse perfil influenciou fortemente na preferência por menos filhos e pelo custo financeiro mais baixo dessa escolha. Ao longo dos anos, essa queda na taxa de fertilidade foi caindo mais em áreas alcançadas pela televisão do que em áreas que não recebiam o sinal.
ÉPOCA – As mulheres são o público principal das novelas. Elas são mais influenciáveis por esse tipo de conteúdo?
Chong – Uma das ideias mais disseminadas pelas novelas, em todos os tempos, é, certamente, a emancipação feminina, junto com a entrada da mulher no mercado de trabalho. A busca do amor e do prazer pelas personagens femininas também é uma constante em qualquer trama – mesmo que ela tenha de cometer adultério, o que também é comum nas histórias.
ÉPOCA – No Brasil, de acordo com o IBGE, vem das mulheres a maior parte dos pedidos de divórcio. Quanto as novelas contribuem para isso?
Chong – Estudar o Brasil sob esse ponto de vista é interessante, porque os casos de divórcio aumentaram dramaticamente nas últimas três décadas. Estima-se que as taxas aumentaram de 3,3 em cada cem casamentos em 1984 para 17,7 em 2002, mais do que em qualquer outro país latino-americano. Nosso estudo avança na hipótese de que os valores da televisão, mais precisamente das novelas, contribuíram de fato para esse aumento, principalmente a partir do momento em que no Brasil há um alcance desse tipo de programa como em nenhum outro país. A novela é, de longe, a maior atração da TV e é veiculada pela Rede Globo, que tem mantido um domínio quase absoluto do setor por cerca de três décadas. Percebemos que, quando a protagonista de uma novela era divorciada ou não era casada, a taxa de divórcio aumentava, em média, 0,1 ponto porcentual. A mudança é positiva. A simples possibilidade do divórcio dá às mulheres a chance de igualdade de gênero no casamento e na distribuição do trabalho, dentro e fora de casa. Também diminui a violência doméstica, os homicídios e suicídios.
ÉPOCA – Há algum período da história das novelas no Brasil em que essa influência no comportamento tenha sido mais ou menos forte?
Chong – Acredito que as novelas tenham tido um impacto mais poderoso quando começaram a ser veiculadas em massa. O que corresponde aos anos 70, principalmente, muito mais que nos anos 90 ou nos dias de hoje. O público, aos poucos, vai se acostumando aos temas e à forma como a trama acontece. A audiência naquele tempo também era muito maior, refletindo-se na influência. Mas é fato que existe um efeito cumulativo e é sobre ele que focamos nossos estudos.
ÉPOCA – A padronização dos valores, de comportamentos e ideais que a televisão introduz é negativa?
Chong – É uma questão de perspectiva. As novelas, em especial da TV Globo, impõem um estilo de vida moderno e urbano que diminuiu as taxas de fertilidade e aumentou as de divórcio. Isso pode ser visto de forma positiva por um grupo e de forma negativa por outro.
ÉPOCA – O brasileiro é o povo mais influenciado por novelas na América Latina?
Chong – Não há evidências concretas em relação a isso, visto que não temos um estudo do impacto das novelas latinas como temos do caso brasileiro. Acredito que no México haja também certa influência, assim como em argentinos, peruanos ou venezuelanos. Mas é indiscutível que no Brasil haja um fenômeno bastante particular não só nos valores e personagens que as telenovelas nacionais retratam, mas também na maneira com que elas são feitas – o ritmo, o tipo de diálogo, tudo é muito marcante e característico. A esse respeito, eu não ficaria surpreso se o impacto das novelas no Brasil fosse mais forte que em outros países.
ÉPOCA – Há como comparar a influência da novela no Brasil com a do cinema na sociedade americana?
Chong – Existem indicações claras de que os filmes americanos têm enorme impacto naquela sociedade. A questão da violência, por exemplo, é alvo de muitos estudos recentes. Mas acredito que essa influência tenha características próprias, e não há como fazer uma comparação com as novelas no Brasil.
ÉPOCA – Pode-se dizer que, no Brasil, a novela é o melhor canal para a difusão de ideias sociais?
Chong – Sim, acredito que seja o mais eficaz. Por isso esses estudos são tão importantes para os países em desenvolvimento. Nas sociedades em que a alfabetização é relativamente baixa e a leitura dos jornais é limitada, a televisão desempenha um papel crucial na circulação das ideias. A televisão tem influência enorme em países como o Brasil, onde ainda há forte tradição oral. Nosso trabalho sugere que os programas orientados para a cultura da população local têm o potencial de atingir uma grande quantidade de pessoas com muito baixo custo e, portanto, poderiam ser usados por políticos para transmitir mensagens sociais e econômicas importantes – sobre aids, educação, direitos das minorias etc. Estudos recentes feitos por psicólogos sociais realçam o papel dos meios de comunicação, rádio e telenovelas em particular, como uma ferramenta para a prevenção de conflitos. A nossa investigação sugere que esse instrumento funciona na formação das mais variadas políticas de desenvolvimento e deve ser aproveitado
Leitura complementar: Telenovela é o “crack” da nossa sociedade (moldaram Angola)
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