Foi uma entrevista muito bem humorada. Não me lembro algum dia ter lido uma entrevista assim. Vale apenas ter paciência e ler do início ao fim. Ele, por exemplo, sonha ter a sua cara no «BI» dos outros. Não pensei duas vezes para reproduzí-la neste blog.
"Ditador é apenas quem está no poder há 32 anos"
Como a JES faltam dois anos para chegar a tal fasquia, então ainda não está na classe dos tiranos. Sugere, com refinadíssimo humor, o ex-radialista, preso em 27 de Maio de 1977, em pleno estúdio na RNA onde apresentava o programa «Kudibanguela»
O programa radiofónico Kudiganguela, emitido até ao dia 27 de Maio de 1977, de que eras apresentador, tinha uma palavra de ordem, segundo a qual, «No dia em que o Kudibanguela acabar, é porque o fascismo entrou em Angola». Será que esta predição se concretizou?
JC – Aquilo era uma espécie de premonição. A PIDE-DISA andava aí a vasculhar e criámos essa frase, que eu desconfio que continue a ser a mais emblemática até agora, que é: «No dia em que o Kudiganguela acabar é porque o fascismo entrou em Angola».
"Acho que aqui não tem oposição, por uma razão muito simples: rádio, televisão e imprensa não estão nas mãos deles, são meios de comunicação públicos."
SA – Há algum político angolano que te cative?
JC – Aqui dentro de casa, não. Lá fora, aquele gajo do Obama. Como é mulato e aqui estão a dizer que é preto, é negro, epá, também fica complicado se eu falar dele. Mas já que você quer uma opinião, o maior orador que nós já tivemos aqui, isso como agora está liberalizado, as imagens vêm no Bilhete de Identidade, por aí fora, digo-te que, seguramente, o maior orador que tu já tiveste aqui neste país é o Jonas Malheiro Savimbi. Maior orador, porque aí tem muito sacana que não sabe o que é orador e não sabe o que é político e depois vai dizer porque, olha, afinal, aquele gajo só tem amigos na UNITA, quando é mentira
Ele garante que foi o primeiro negro a entrar na Rádio Nacional de Angola, nos idos de 1974, como jornalista. E jura a pés juntos que viu o Criador, o próprio Deus, a fazer as «necessidades maiores» nas barrocas do Miramar. Aliás, zanga-se com quantos «ousem» duvidar dessa afirmação que raia a heresia. Mas assim é o entrevistado do Semanário Angolense, José Carrasquinha de sua graça, proprietário da «Sarrabulho Corporation», lá no «Lusaka» (é no Sambila, não confundir com a capital zambiana).
É um angolano que olha para as coisas sérias da vida sempre com esse lado do seu carácter: um apurado senso de humor. E quando expõe as suas ideias, fá-lo geralmente recorrendo a uma linguagem que mistura o português corrente com o calão, enfiando pelo meio um ou outro termo em inglês desenrascado. Carrasquinha continua a aguardar pelos seus salários desde que foi forçado a sair da Rádio em 27 de Maio de 1977, altura em que foi preso e acusado de ser fraccionista. Desmentindo a acusação, assegura que o fraccionismo não existiu e que foi «palavra só para matar o outro». Durante a longa conversa com o SA, esta foi, de resto, a parte em que Carrasquinha acusou o toque e se mostrou magoado. Mas foi como uma sombra fugaz, pois de imediato voltou a descontrair-se. Cidadão atento aos sinais dos tempos, ele defende o modelo de eleição presidencial directo e pede aos gestores públicos um pouco mais de contenção na forma como assaltam o erário: «não sejam tão gatunos», diz Carrasquinha, que também tem uma veia musical, pois foi vocalista do grupo de rock «Turma do Cabelo Mau», ou ainda «Quinta Sinfonia», que nos anos 70 superlotou salas de cinema como as do Miramar, Avis, Restauração, Ginásio e o Autódromo de Luanda. Para os mais próximos, ele é também o Zuze Dya Ngana, alcunha que adoptou na prisão para iludir a vigilância dos «pidescos da DISA».
Em suma, caro leitor, siga uma daquelas conversas do género «fait-divers», mas da qual podemos tirar ilações sérias. Muito sérias mesmo!
Pascoal Mukuna
Semanário Angolense (SA) – José Carrasquinha, faça uma breve trajectória da tua vida até teres entrado na Rádio Nacional.
José Carrasquinha (JC) – Andei um tempo no Luso, que hoje é Lwena. Andei também na Kanata e no Liro, que agora chamam província de Benguela, mas para nós é «província do Lobito». Estacionei em Luanda no bairro Flores, que é a central do Sambizanga, até aos dias que correm. Se me perguntares qual é a minha idade direi que sou mais velho, mais nada. Antes de entrar na Rádio, eu trabalhei no jornal «O Comércio», mas comecei nas lides jornalísticas na revista «Notícias». Então, certa vez, por causa duma «loira», (mulher) eu pretendia escrever um livro. Como azar de preto nunca vem só, tive dois problemas aí por aí e queria vender uns rascunhos no antigo Prémio Cuca de Literatura. Afinal, preparei mal o dossier e cheguei tarde. Então, resolvi vender aquilo. O parque gráfico era competitivo. Fui a duas gráficas, mandaram-me lixar. Fui ao «Notícias», onde encontrei um colonial chamado Moutinho Pereira, e esse gajo é que pergunta «quanto é?». Eu disse quatro mil escudos e ele disse: «Oube lá, tu ficas aqui a ganhar 4 mil escudos por mês. Não é melhor?». Eu respondi que sim. «Então, quando é que queres começar?», eu disse «hoje já». Ele pediu que voltasse dois dias depois, e pediu o meu bilhete. Comecei. O homem foi-me ensinando onde se põe quem, o quê, como, quando, porquê, o básico. Então, chega o 25 de Abril e o Moutinho muda-se para o jornal «O Comércio», para onde também me leva. Quer dizer, eu era o miúdo dele. Um dias desses, havia uma greve nas Obras Públicas e numa espécie de conferência de imprensa, era eu pel`«O Comércio» e o Francisco Simons pela Rádio Nacional a fazermos perguntas. Parecia uma disputa. Nós dois monopolizámos a palavra. Parecia-me que ele, como mais velho, não queria ser o penúltimo a fazer pergunta. Dois dias depois, recebo um convite e entro como o primeiro preto lá na Rádio Nacional. Porque já lá estavam o Zé Viola, parece que o Dionísio na Voz de Angola. Eu entro tipo «free us bird», quer dizer, livre como um pássaro. Ganhava uma vez e meia mais do que no jornal. Aí não tem discussão: jocker vai onde tem troco. Foram anos porreiros, criei bons amigos e bons inimigos, como não pode deixar de ser, e estou aqui.
SA – É verdade que continuas à espera dos teus salários na Rádio Nacional de Angola desde 1977, ano em que foste parar à cadeia por causa do «fraccionismo»?
JC – Isso é inquestionável! É aquilo que é devido. É de esperar. Portanto, continuo à espera.
SA – Sei que tentaste regressar à Rádio Nacional e foste impedido. Ainda alimentas essa esperança?
SA – Faça uma análise sobre as liberdades de imprensa e de expressão em Angola?
JC – Por acaso até, antes desta entrevista, estava aqui a ter essa conversa com um parceiro. A questão que se coloca é o que é a liberdade de imprensa e o que é a liberdade de expressão. Há muita malta aí no «Jornal de Angola» que é do meu tempo. Parece que um desses assessores portugueses ou luso-angolanos que lá estão é do meu tempo. Hão-de concordar comigo que liberdade de Imprensa parece que é de acordo com a óptica do utilizador, como agora está na moda dizer. Essa curva toda que eu te dei é para dizer que há um bocado de liberdade de imprensa; não há na totalidade. Por exemplo, nos vossos jornais, você critica e lá vem alguém, provavelmente com ordens superiores, a dizer sai uma acção judicial contra o fulano, contra o sicrano. Recordo-me aí há tempos, num jornal, onde porque o indivíduo expressou a sua opinião de que talvez o Presidente não fosse inocente em relação a este e àqueles actos, veio o martelo-mor e pisou- lhe os pés. Parece que o processo corre aí. Portanto, estamos mal de liberdades de imprensa e de expressão. No aspecto desta última, às vezes não vale a pena falar disso, por uma razão muito simples: quando o outro diz que é dono da casa, tu vais dizer o quê?
SA – Os processos movidos contra a Luísa Rogério, o Victor Silva e a Ana Margoso por Tchizé dos Santos enquadram-se nisso que acabaste de dizer?
JC – Bem feitas as contas, aquela senhora que moveu a acção judicial contra esses parceiros creio que manifestou uma fraqueza ou foi muito intempestiva, porque ela não precisava disso. Essa tal fraqueza que eu disse há pouco… Eu não a conheço, mas fico com a impressão... Epá, era suposto que uma senhora com tal grau académico (parece que é formada em comunicação social) estivesse preparada para debates e, na base de argumentos, dizer: «ouve lá, ó Luísa, fique a saber que é assim, assado e cozido». Mas não sei o que lhe deu na consciência para que ela movesse essa acção. À partida, se isso aqui funcionar como deve ser, não vai sair nada. Como aqui no «Lusaka» [Sambizanga] a malta diz, sai fumo! Já tenho as minhas contas feitas sobre quem é ditador e quem não é. Para mim, ditador é quem está no poder há 32 anos. Ora, ela é filha do Presidente e ainda por cima do nosso país. Como o Presidente ainda não está há 32 anos no poder, não é ditador. Logo, por extensão, ela não é.
SA – Entre os jornais, as rádios e as televisões, quais são os teus eleitos?
JC – Em termos de televisão, a nível nacional, o que eu gosto é a Zimbo, talvez por ser novidade. Jornais, eu todos os fins-de-semana compro três: o «Semanário Angolense», o «Folha 8» e o «Novo Jornal».
SA – Como jornalista que acompanha a actividade jornalística em Angola, na tua óptica, há algum jornalista que já devesse vencer o Prémio Maboque de Jornalismo mas que ainda não tenha sido galardoado?
JC – Há, seguramente, e deviam receber com retroactivos. São o director do vosso jornal, o cambuta, o Gustavo Costa e o William Tonet. Eu como ando muito aborrecido com esses prémios, a mim não me dão prémios, o meu prémio é o dinheiro que o MPLA me deve. Mas eu aqui o meu nome é paciência, porque fui eu que dei essa letra, «Paciência», lá para o Matadidi Bwana Kitoko.
SA – Não me diga!
JC – Estás a duvidar?
SA – Ok. Que trabalho jornalístico mais te marcou?
JC – Provavelmente foi quando o Marcelino dos Santos me salvou de ser degolado pelos seguranças de Samora Machel, em Moçambique. Eu estava a passar na lateral para conseguir um furo. Ou o Jonas. Tu fazes-lhe uma pergunta e ele dá-te o troco. No Huambo, perguntei-lhe uma coisa, o homem respondeu. No Lobito, fiz-lhe a mesma pergunta por outras palavras, ele afirmou: «eu já te disse».
SA – Algum conselho para a nova geração de jornalistas, em particular os das rádios?
JC – Eu já cometi. E quando digo eu, desconfio que os outros do meu tempo, se tiverem honestidade, hão-de reconhecer isso. O erro que eu cometi é que eu fazia mais propaganda do que jornalismo. Então, é essa vacina que a gente deixa para essa raça que aí está. Eles que façam o favor de aprender, já não sou eu que vou ensinar. Mas aprender com pessoas capazes, porque jornalismo é uma coisa e propaganda é outra. É este o conselho.
SA – Tiveste acesso aos projectos de Constituição do MPLA e da UNITA? Se sim, qual o que melhor se adequa aos teus anseios?
JC – Presidente não deve ser bêbado. Presidente governa quatro anos, depois vai para casa. Porque a alternância gera progresso. O outro gajo quando lá chega, diz, «não, eu vou mudar, essa história de ter aqui duas garrafas em cima da mesa não dá, fica só uma, é mais estético». Isto é o básico. Presidente não pode ser bêbado. Sabes que os bêbados falam à toa e depois pode dar desastre. E se não concordarem com a minha ideia, então digo: presidente pode ficar lá cem anos ou até morrer, é a melhor maneira de você evitar problemas. Assim, não tem essas conversas que estão a dizer que o Man Zé quer ficar lá toda vida, porque o Man Zé mentiu, não. Essa, vamos acertar devida e definitivamente. E que não ponham a cara do outro indivíduo no meu bilhete de identidade. Tu sabes qual é o nome que eu dei a esta rua? Quer dizer, cada um valoriza o pai dele ou a mãe dele. Aqui em cima é Travessa da Dona Ana. Essa da Corporation é Rua do Sô Silva, está lá nas Finanças e vejo quando vou pagar o imposto.
SA – Mas, nós já tivemos algum Presidente bêbado?
JC – Tira as ilações que quiseres?
SA – Como vês o processo de reconciliação nacional em Angola?
JC – Presumo que a reconciliação nacional neste momento ainda está no papel. Na rua ou na prática, nós não vemos. Porque tenho estado a notar que desde a capitulação da UNITA ou mesmo antes disso, se não estou enganado, já houve aí cerimónias de atribuição de medalhas disto e daquilo. Parece que os outros oficialmente não lutaram e alguns que tiveram a sorte de entrar no último saco receberam umas medalhas daquelas que um indivíduo diz para inglês ver. Esse é um aspecto. O outro, a verdadeira reconciliação vai começar no dia em que virmos aí uma rua chamada Gentil Viana, Matias Miguéis, José Carrasquinha, Nito Alves, Monstro Imortal, Mário Pinto de Andrade, essa malta toda, ou bustos em homenagem deste ou daquele, aí podemos ter a certeza que se está a dar passos largos no sentido da reconciliação nacional. Se reparares, o factor principal para a dita reconciliação nacional é o MPLA, não tem mais outro partido. É esse partido que tem de fazer as pazes com ele mesmo e com os outros. Há dias, há um palerma que me disse que o Augusto Ngangula foi fundador do MPLA. Eu muitas vezes gosto de dizer, pois, o «Works Party» gosta de ardósia, não gosta de quadros. Ora, esse tipo com essa mentalidade, quando lhe disseres, olha, o Mário Pinto de Andrade, etc., etc., ele vai dizer que não. Enquanto tu disseres que sim, ele pega numa marreta e dá-te. A reconciliação começa já por aí, não estar aqui a inventar histórias, lá dentro, primeiro, depois aqui fora.
SA – Como interpretas as constantes mudanças de posição do presidente do MPLA e, em consequência, do seu partido em relação ao modelo de eleição presidencial?
JC – O mundo hoje é quase tudo em linha recta. É por isso que tem aquele português que diz globalização. A tendência quase generalizada é realizar eleições directas, mais nada. Agora, quando você vem porque, porque, porque, eu, infelizmente, fico a pensar que isso é uma forma de um indivíduo ficar no poder até morrer. Aponta aí: penso que as eleições devem ser directas, mais nada. Quando o outro gajo vem cá te contar que evoluiu, amanhã ele vai dizer, não, nós não só evoluímos, também diluímos, depois progredimos. Até quando você torrar os ossos todos no inferno, diz, sim senhor, a nação está em paz.
SA – Tens alguma previsão sobre o vai acontecer no próximo congresso do MPLA?
JC – Aquilo é uma armadura muito segura. Deixa só te dizer uma coisa: o Man Zé, se tiver físico para tanto, daqui a mil anos, ele continua lá. Da forma como aquilo está, eu estive aí a ler, você não tem maneira de lhe tirar. Essa é aquela conversa da tropa, você para queixar o chefe que te bateu, lhe entrega a informação para ele dar ao superior dele.
SA – Quem é o Man Zé?
JC – Man Zé é só aqui no bairro. É o kota Man Zé Eduardo. Antigamente era «Viajante». Essa alcunha dele eu não sei. O Man Pascoal Kabuja foi quem me contou, o avilo dele. O estilo dele é cara podre. Tem pouco gajo aqui no território que diz que se dava bem com ele. Ele ficava como quem diz «dimoxidié». Quer dizer, estou aqui, estou bem. Quando digo Man Zé estou a referir-me ao Presidente. Se aí tem esses protocolos de que tinha de falar Sua Excelência, então suspende a entrevista para que eu lhe vá informar primeiro e depois publicares. Não é assim? Parece censura.
SA – É possível construir um milhão de casas em um ano, quando nem a metade se ergueu em mais de 30 anos?
JC – Se fosse eu a dizer isso, vocês diriam que eu estava bêbado. E a gente sabe que o Man Zé não é dessas frequências. Então, aqui, tu tens duas saídas: ou ele não topou bem no papel, leu mal ou os tais conselheiros, como a gente muitas vezes diz, deram-lhe um conselho errado nesse aspecto. E tem piada que, agora, lembro-me da tal história das tais 20 casas por dia no Zango, que não se conseguiu. Se marcares 20 casas por dia, 3 vezes 4, igual a 12. Doze mil em não sei quantos dias, parece que é isso. Ena! Não eram um milhão, parece que era uma tonelada. Depois tu fazes lá as contas aí. Portanto, é só para te responder: é melhor tu perguntares isso lá ao Man Zé se é possível. Porque político inventa milagres. ■
Conselho aos gestores públicos: «Roubem menos»
SA – Que soluções proporias para que Luanda melhorasse nos aspectos de saneamento básico, criminalidade, trânsito e outros problemas que a afectam?
JC – Provavelmente, só duas coisas: que os gestores dos dinheiros públicos não fossem tão gatunos como são. Segundo, ter visão para depois de amanhã, não é só para amanhã. O que é que eu quero dizer? Vê uma coisa muito gira que aí está: reabilitaram o Caminho de Ferro de Luanda, que é o tal que nos primórdios, no tempo dos coloniais, ia até Malanje. Tínhamos aqui o ramal que ia para o Kicolo. É a tal conversa, toparam a árvore, não toparam a floresta. Porque se tu tens essa linha férrea de Cacuaco, que sai daqui atrás da Cuca, estava lá, ninguém me vem cá dizer que não, se gastam esse troco ali, epá, tu não imaginas. Porque nós, passe a expressão, não é assim que se diz, mas essa é a minha linguagem aqui na lateral, nós temos uma tonelada de pessoas lá em cima no Panguila, Kifangondo, não sei quê, não sei mais quantos. Aquela turma para vir aqui para a cidade é um bico d’obra, mas tu com uma linha férrea por aí estava o dia ganho.
SA – Um breve diagnóstico sobre os sectores da Saúde e da Educação.
JC – É o que eu digo. Tem de se pedir a quem estiver nessas áreas para não roubarem muito, roubem só um bocado. O resto vai chegar para endireitar. Porque fica imoral ouvires dizer que a fulana morreu porque não tinha aspirina. ■
«Aqui não há oposição»
SA – O que é que achas do desempenho da oposição em Angola?
JC – Acho que aqui não tem oposição, por uma razão muito simples: rádio, televisão e imprensa não estão nas mãos deles, são meios de comunicação públicos. Há dias até estava aqui a teorizar – porque sabes que eu também às vezes viro filósofo, poeta e tal, tenho horas próprias para isso – se esses meios de comunicação são do Governo, ah bem, então talvez valham o que valem. Nos Acordos de Alvor, por exemplo, o braço de ferro foi a comunicação. O outro kota a resmungar «eu quero a rádio» e o outro a dizer «Não, eu é que quero». Por acaso até não falaram de televisão, porque praticamente nasceu ou evoluiu naquele período, porque por sorte estava num estágio embrionário. A rádio já lá estava, porque tinhas o programa para amaciar os pretos, que era «A Voz de Angola» ou que raio era.
SA – Há algum político angolano que te cative?
JC – Aqui dentro de casa, não. Lá fora, aquele gajo do Obama. Como é mulato e aqui estão a dizer que é preto, é negro, epá, também fica complicado se eu falar dele. Mas já que você quer uma opinião, o maior orador que nós já tivemos aqui, isso como agora está liberalizado, as imagens vêm no Bilhete de Identidade, por aí fora, digo-te que, seguramente, o maior orador que tu já tiveste aqui neste país é o Jonas Malheiro Savimbi. Maior orador, porque aí tem muito sacana que não sabe o que é orador e não sabe o que é político e depois vai dizer porque, olha, afinal, aquele gajo só tem amigos na UNITA, quando é mentira.
SA – A expulsão de angolanos dos dois Congos que outras consequências poderá trazer nas relações com esses países?
JC – Tu tens aí a história dum kota que deu uma bofetada no outro e esse problema arrastou-se por muitos anos. Essa metáfora é para te situar nesse caso das expulsões. Se queres uma opinião isenta, eu também não tenho nada a ver com os zairenses. Para começar, os zairenses só me incomodam no facto de estarem a dizer que as crianças são feiticeiras. O resto, comam macaco, comam «nfúmbua», quer lá que se lixem, cada um é como é. Agora, que isso vai entortar vai. Se queres também que reforce essa minha dita sinceridade e equidistância, a questão reside no seguinte: os gajos vêm aqui roubar. Porque se tu entras em casa do outro sem papel e depois estás a sair de lá com alguidar e não sei quantos, chama-se roubo, é o equivalente aos tais diamantes. Muito bem, então, aí a turma do Man Zé tem razão de correr com eles. O problema está aí, na forma como correr com eles. Também há hipocrisia das Nações Unidas ou dos tratados internacionais. Vou só te falar da Convenção de Genebra. Porquê que você vai chamar «criminoso de guerra» a outro gajo que te matou com uma bomba, por exemplo, de gindungo assado? Não vejo piada, porque eu quando vou para lutar contigo, vale tudo. Tem um gajo aí, estava na kapanga, o gajo quase a morrer, gritou «ai dente, ai dente», o outro disse: «não é dente, é «gorpo» [golpe]». Portanto, quando a gente vai para lutar vale tudo. Um matulão que eu não aguento mão a mão, o quê que eu faço? Pego pedra. Dantes era assim que eu aprendi. Agora é que os cobardes estão a ir buscar pistola. Logo, eles que se entendam, ninguém corre ninguém. Os zairenses podem ter o seu bocado de razão, só bocado. Eles excederam-se, eu já olhei aqui para a lateral e eu disse «se eu estivesse no lugar do Man Zé, a essa hora ia sair muita fumaça» e não vale a pena dizer aqui por escrito o que eu pensei.
SA – E como encaras a entrada ilegal de outros estrangeiros no país, em particular de portugueses, muitos dos quais vão trabalhando de forma ilícita, em muitos casos ocupando lugares que seriam de angolanos?
JC – Uma vez queria me meter aí num negócio, o outro indivíduo mandou-me lixar e eu lamentei «então aquele “ngurra” [estrangeiro], ele disse-me «você não dá!». Muito gajo que estás aí a ver tem bilhete, mesmo esse bilhete da concórdia ele já tem. Quê que você vai fazer? Se fosse nos meus tempos, um monte de bicos nesses gajos, mas tu não resolves. É como matar os meliantes. Os outros estão aí a nascer como cogumelos.■
«Foi palavra só para matar»
SA – Até que ponto estiveste envolvido no 27 de Maio de 1977?
JC – Aqui ninguém esteve envolvido. Dou-te só um exemplo: dois dias depois, saiu um comunicado, na primeira página do Jornal de Angola porque o fulano quis matar, o fulano jantou com o sicrano, combinaram assim, assado e cozido. Um dos nomes desses indivíduos que eles dizem que queriam matar o fulano, está aí, é ministro. Ora, isso, em português, chama-se aldrabice, vigarice. O que foi o 27 de Maio? Continuo a dizer que foi um processo de comunistas. Só que entre eles havia os mais sacanas e os menos sacanas. Uns diziam, bem, é preciso pôr este gajo de lado. E foi nessa perspectiva que uns inventaram o fraccionismo e, para piorar, foram chamar os cubanos. Depois, vão dizer que os cubanos não estavam aqui. O artigo 56 da constituição do MPLA diz que é uma congregação de pensamentos e não sei quantos. Isso quer dizer que se tu pensas A e o outro pensa B vamos arranjar o tal máximo ou mínimo denominador comum. Tu hostilizas o outro, matas-lhe e depois dizes que aquele gajo era um filho da… Foi isso que se passou lá. Fraccionismo de quê? Isso é palavra só para matar o outro. Ouve só, vou só te contar uma coisa: o 27 de Maio serviu para muito gajo exorcizar os seus próprios fantasmas. Tem gajos que não fizeram nada a ninguém. Tem um gajo chamado Ginguma, você não sabe, porquê que o mataram? Então, saber jogar bem a bola é crime? Ó lá, não me faça ficar zangado, vai-te fo…
SA – Já se disse tudo sobre essa tragédia?
JC – Não! Tem piada, eu soube – por acaso até ainda nem me encontrei com ele – que o Man Zé era o coordenador da comissão de inquérito e até hoje eu não conheço os resultados desse dito inquérito.
SA – Mas algumas vozes dizem que também o Man Zé esteve envolvido.
JC – Algumas vozes e no inferno tem muitas vozes.
SA – Concorda que se crie uma Comissão da Verdade para exorcizar o problema?
JC – Da verdade ou da mentira, vamos discutir o assunto, mais nada, meu.
SA – O programa radiofónico Kudiganguela, emitido até ao dia 27 de Maio de 1977, de que eras apresentador, tinha uma palavra de ordem, segundo a qual, «No dia em que o Kudibanguela acabar, é porque o fascismo entrou em Angola». Será que esta predição se concretizou?
JC – Aquilo era uma espécie de premonição. A PIDE-DISA andava aí a vasculhar e criámos essa frase, que eu desconfio que continue a ser a mais emblemática até agora, que é: «No dia em que o Kudiganguela acabar é porque o fascismo entrou em Angola». Se tu fizeres contas, sem ramela nas vistas, vais perceber que tem tanto de veracidade como um bilhete... «nonó» [novinho] da Silva.
SA – O Kudibanguela era um programa dos fraccionistas?
JC – Não sei porquê! A base de qualquer programa numa estação emissora é divulgar ideias, entretenimento, uelelé, uelelé, como vocês dizem, etc., etc. Portanto, o que era o Kudibanguela? Era mais um programa de rádio. Vocês não costumam ouvir aí programas dos burros, programa dos espertos, programa dos mais ou menos, até vem lá das misses, não é assim? ■
Turma do Cabelo Mau
O grupo do rock and roll em kimbundu
SA – Mesmo cantando rock em quimbundo, a Turma do Cabelo Mau ou 5ª Sinfonia, grupo de que eras vocalista, conseguiu a proeza de penetrar as elites coloniais, já que as músicas em línguas nacionais eram quase que rejeitadas. Como conseguiram tal feito, superlotando inclusive salas de cinema como o Miramar e o Restauração?
JC – Bem feitas as contas, nós não conseguimos proeza nenhuma. Aprendemos o dito a César o que é de César. Antes de nós, estavam os Negoleiros, os Dikindos, os Kimbambas do Ritmo, que era lá do Man Zé. Agora, no meio desses todos, os que primeiro se introduziram na sociedade colonial daqui foi o Ngola Ritmos. Esse é que, desconfio, podes dizer os puros. Nós éramos uma versão angolana do que era o Ossibisa, o Carlos Santana, o afro-rock. Mas é verdade que o nosso som batia lá! Eu estava lá a cantar o «Ngana Esperança ua ngui ambele não sei quê».
SA – Quem eram os outros integrantes da Turma do Cabelo Mau ou 5ª Sinfonia? Tinham uns nomes muito excêntricos, não?
JC – Nós tínhamos o Arlindo «Dany» (Arlindo Mesquita). Coitado! Faleceu esta semana na África do Sul. Tocava viola ritmo. Tínhamos o «Pick Touchon» (Evaristo Silva, meu irmão mais velho); o falecido «Palhaço», que era o Abuzgnet Dias Palhas, baterista; o «Mister Mbuco», filho do criado Simão, que era da percussão; o «Tombia Mufesta» (João Manuel Tombia) e eu era o «Danis Clidens the Better in the Morning at Home». Houve um período em que «Little John», não o vejo há uma tonelada de anos, substituiu temporariamente o «Palhaço» porque este esteve ausente. Depois, tínhamos a equipa de apoio, em que estava o «Ivanhoé Matos da Fonseca Síboda», que era o gajo que recolhia os dinheiros, e o «John Elonso Santos Holliday».
SA – Vocês consumiam estupefacientes ou a vossa inspiração era natural?
JC – Mas um indivíduo para trabalhar precisa de fumar? Isso aqui não é Maradona! Marca golo com a mão e depois diz que Deus é que mandou, não!
SA – Alguma vez pensaram em reunir- se para gravar um disco como muitos grupos antigos têm estado a fazer?
JC – Aqui próximo à direcção da Movicel tem uma farmácia, por cima da qual existia um estúdio, onde nós estávamos a gravar, em 1971. Mas, depois, a questão do dinheiro inviabilizou. Senão, hoje as pessoas estariam a ouvir as músicas que nós achamos que eram boas e que os nossos fãs gostavam. Não saiu em disco, paciência. Também não vale a pena chorar, mais velho que chora é burro. ■
JC – Eu? Já viste! Isso são manobras do imperialismo. Então vou ter isso, onde é que eu estava a esta hora? Pensas que estaria aqui? Toda hora a dar aí umas curvas. Isso é inveja. E a «Corporation» não é restaurante, não é bar nem é hotel, é uma espécie de parlamento extra. Tu próprio sabes que aqui é o único sítio onde falo mal de todos, mais nada. Falo mal e falo bem, é claro. Aqui é onde me sinto à vontade. Falo mal deste ou daquele, no bom sentido. A mim também me falam mal.
SA – Gabaste de ser o homem mais bem informado do «Lusaka» [Sambizanga]. Explica lá como consegues isso.
JC – Yá, sou. Eu posso ficar estacionado no Cuba e as pessoas encontram-me e me dão as informações. Vêm à minha procura «olha, Man Zuze e tal…».
SA – Tens ou tiveste arma(s) em casa?
JC – Tinha umas «kilunzas» [pistolas] lá no kubico [casa], mas respondi ao apelo do Governo e já as entreguei, apesar de que eram todas legais.
SA – E como é essa estória de teres visto Deus a defecar nas barrocas do Miramar? É verdadeira?
JC – Eu não vou contar mais. Vou só te dizer o seguinte: se fosse um mulato ou um branco a dizerem que viram Deus a cagar, vocês diriam que é verdade. Mas como é um preto fulo como eu, dizem que é mentira. Então fiquem lá nas vossas suposições. Minnesota Yolapamba é a minha testemunha ocular.
SA – Tu e a tua família tratam-se nos hospitais públicos, centros de saúde, nas clínicas privadas ou no estrangeiro?
JC – Então, eu eterno e glorioso Zuze dya Ngana, como também me conhecem aqui e, já agora, ainda como «Doutor Bagre Fumado», acreditas que vou ser tratado nessas Endiamas e companhia? É aqui no Centro de Saúde do Sambizanga.
SA – Mas dizem que volta e meia estás em Portugal, na Namíbia, etc.
JC – É mais uma manobra dos gajos que não me gramam para inviabilizarem que o MPLA me pague o dinheiro que me deve, tás a topar? assim o «works party» [partido do trabalho]. A pensar: «aquele já está lunguta [enriqueceu] e não precisa».
SA – Já pensaste em escrever as tuas memórias?
JC – Não. Porquê? Eu também tenho vontade de chegar à idade daquele gajo que não quer deixar o poder até 87 anos. Então, está a faltar muito tempo, não é?
SA – Como proprietário da «Sarrabulho Corporation», alguma vez já beneficiaste de crédito bancário?
JC – Não, tu mesmo sabes. Eu já vi, tu deves ser um membro da 5ª coluna. Vieste aqui fazer perguntas para me arranjar problemas lá com o outro gajo. Como é que me vão dar crédito? Como? Fala só? Os outros que recebem são filhos do fulano de tal. Eu sou filho da dona Ana e do sô Silva, tás a topar?
JC – Todos os gajos sonham positivo. Não sou excepção.
SA – Como surge o nome Zuze Dya Ngana?
JC – Eu sou filho da dona Ana, a maior doméstica do país. Se o meu primeiro nome é José e se estiveres a falar com um quimbundo vais-me apresentar «ó yó Zuze dya Ngana». O nome surge na cadeia porque eu estava a disputar a minha sobrevivência contra esses pidescos da DISA que andam por aí e para poder comunicar com o exterior. Foi uma forma de iludir a vigilância dos pidescos, que conheciam o nome Carrasquinha mas não conheciam a pessoa.
SA – Estás filiado em algum partido político?
JC – Sou do Partido Popular da Tábua?
SA – Que partido é esse?
JC – É o meu partido.
SA – Na tua opinião, como é que está o nível da corrupção em Angola?
JC – Ah! Está saudável, está saudável!
SA – Um comentário sobre o trabalho que a administração do Lusaka [Sambizanga] está a realizar e o projecto de requalificação.
JC – Esse administrador foi eleito? Se foi eleito, eu faço um comentário, se não foi, não faço. É melhor falar mal ou bem do dono dele. O projecto de requalificação, por exemplo. Se há alguma razão para eu falar mal do Man Zé, é essa. Ele é do «Lusaka» e devia ter tratado é, é do «Lusaka»! E não tratou porquê? É provável até que tu que estás aí na lateral alegues preocupações a nível nacional. Não é só isso. Se te falar de Kamanyola e ou de Yamoussukro vais dizer porque, porque...
SA – Como estamos em termos de campos para a prática do futebol?
JC – Têm estado aqui a cometer muitos erros e não há espaços para mais nada. Praticamente Luanda não tem campo para os miúdos jogarem a tal bola de trapo. Isso desequilibra. Aqui no município, é só o Campo da Académica. Agora dizem que é Mário Santiago. Ele que fique lá com a paz dele em segurança, se está no Céu ou no inferno, mas o nome daquele campo é da Académica.
SA – É verdade que foi Francisco Simons quem te ajudou sair da cadeia?
JC – Não me salvou da cadeia. Fui apoiado nos meus esforços para sair da cadeia. Eu já estava preso e havia uns pidescos que me queriam matar, mas decorria só da inveja deles. «Quê?! Carrasco, mais conhecido que eu?» O Simons foi um dos que escreveu a meu favor. A maior parte desses gajos que escreveram a pedir que saísse da prisão eram mulatos. Vocês andam a pensar que eu sou racista. Grande parte dos meus amigos são mulatos.
SA – E a tua «loira» também é mulata,não?
JC – Não, vai-te lixar, é uma preta fula como eu. Está bem, os pais dela são mulatos. Tu tens coragem de vir me dizer? Um dia eu vou atacar o teu director para lhe perguntar como é que o Obama é negro. Negro de quê?! Nós, gajos como eu, somos pretos, o Obama é «Iazula», mais nada! É mulato, ó! Está o César Barbosa, um gajo que foi director da Rádio, meu amigo, é um dos madiés que também subscreveu, o Lucrécio, o Mogas, enfim... ■
Fonte: Semanário angolense, edição 343, 21 de novembro de 2009.
1 comentários:
Cota Zuze com o seu grande humor de sempre, como eu gostaria de poder ver escritas suas memórias e, nos relatar aquilo que aconteceu no programa de radio no dia 27 de Maio de 1977 onde ele era apresentador do programa kudibanguela.
Tenho a certeza que daria um contributo muito grande para conpreenção da hístoria do nosso país
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