Por ter decretado tolerância zero à corrupção e má governação, somos todos forçados a dar as boas vindas do presidente Eduardo dos Santos ao país real, da gasosa e do assalto ao bem público. Se não for tarde de mais, a tolerância zero será a primeira medida real, concreta, contra um mal que subjugou completamente as boas práticas governativas do país. Quando os jornais privados há 10/15 anos denunciaram o intenso descaminho dos bens públicos e o mau uso dos dinheiros públicos alguém entendeu chamá-los de pasquins, preferindo-se fortalecer o discurso da falta de provas ao invés de se obrigar as estruturas de investigação a cumprir o seu papel.
Quiseram fazer vingar uma cultura da delação, onde o queixoso é que tinha a obrigação de denunciar e de apresentar o ónus da prova, quando, na verdade, a denúncia pública deveria ser um ponto de partida para um trabalho de investigação de instituições como a Procuradoria da República ou o alta instancia contra a corrupção (nunca criada, apesar de aprovada em 1990).
A Assembleia Nacional e o Tribunal de Contas, ainda que fiscalizadores, não são suficientemente especializados na matéria para encetar um verdadeiro combate ao nível de corrupção e promiscuidade reinante. A principal falha deve ser atribuída a quem, tendo poder para isso, não criou nenhuma estrutura especializada para o combate à corrupção.
A segunda constatação sobre a tolerância zero é que ela é em si um reconhecimento de que houve até agora uma relativa tolerância a esses assuntos. Aqui tolerância quer dizer fechar os olhos, não dar a devida importância, não valorizar, deixar passar as informações sobre esbanjamento, corrupção e nepotismo. Se só agora haverá tolerância zero é porque antes não havia, logo, com a sua tolerância, alguém criou e alimentou o monstro. Fecharam-se os olhos a ponto de nunca ninguém ter sido demitido por má gestão, nepotismo ou corrupção. A conveniência de serviço foi o maior aliado público da má governação. Agravou-se o quadro com a reiterada política de nomeação para outros cargos públicos de pessoas vistas na sociedade como estando ligada ao descaminho de bens e meios públicos. Passou-se à sociedade a ideia de que o crime compensa e o gestor público, fizesse o que fizesse, teria sempre um vale dos caídos qualquer para uma segunda, terceira ou ultima oportunidade. Funções de Estado de alta dignidade como deputado e embaixador foram reduzidas a meros pontos de passagem ‹‹à espera de colocação››, desvalorizando-as em primeiro lugar, mas criando também o complexo de que uma ‹‹colocação›› de verdade, é lá onde há dinheiros, muito dinheiro para gerir, muitos contratos para assinar e a oportunidade de ‹‹resolver a vida››. Foi essa permissividade, essa tolerância que nos levou aos dias de hoje e, uma mudança, se não for demasiado tarde, não pode ser feita sem alterar radicalmente, de cima a baixo, o estilo de governação, os métodos e as pessoas.
O quarto elemento a ter em conta é que a tolerância zero só foi decretada para depois do congresso. Isso significa que até dez de Dezembro ainda são permitidas as irregularidades dos últimos trinta anos. Aliás, parece um convite aos menos avisados para que se despachem, já que depois do congresso fecham-se as portas e as oportunidades. Há anos que a situação do país exige uma acção vigorosa mas o presidente, não só a anunciou tarde, como ainda deu uma inacreditável moratória de cerca de um mês. Não admira que temendo a queda e a tolerância zero, muitos nestes dias se atirem aos cofres das empresas públicas e dos ministérios exactamente como em 1991-1992, quando se temia por uma derrota eleitoral ou agora em 2008 quando muitos temiam que não constassem de um governo novo e de estilo radicalmente diferente que, como sabemos, nunca passou da promessa.
Seja como for, é prudente avaliarmos se existem condições para a aplicação da tal de tolerância zero. Infelizmente, temos de concluir que não há condições objectivas e subjectivas para a sua aplicação. O mais que, certamente, se conseguirá é encontrar uns bodes expiatórios para sacrificar em público. Mero populismo porque as práticas e a atitude perante elas vão continuar exactamente na mesma. O maior óbice é o facto de se ter desenvolvido estruturas de poder a cultura do silencio e do ‹‹laissez faire, laissez aller, laissez passe››. Seja em que tribuna for, ninguém se atreve a criticar o projecto vindo de um camarada, mesmo quando se tem a sensação de que ele está feito só para ‹‹sacar massa››. Quem viole essa regra de ouro caminha para o isolamento e corre o risco das intrigas palacianas, dos grupos de interesse conseguirem o seu afastamento. Há, assim, um pacto de silêncio público, sobretudo dos casos em que estejam envolvidos familiares, supostos protegidos ou colaboradores próximos do presidente ou até de amigos destes. Há fortes suspeições de negócios do Estado que agora são privados, de grandes compras desnecessárias e sobrefacturadas ou de projectos de duvidosa ‹‹bondade patriótica››. Num panorama destes, tolerância zero de quem contra quem?
Todo o estilo de governação está errado e propicia as distorções que o presidente diz querer combater. Começa pelo militantismo que se instalou no país. Em muitos casos, os bons militantes não são os mais competentes governantes. Nesses casos específicos, a chegada ao lugar de ministro ou de director não é uma consequência natural de uma carreira ou da competência profissional mas antes uma inimaginável oportunidade de subir na vida. É uma irrepetível oportunidade para quem não tinha nem currículo nem o sonho de ser nomeado. O caminho é fazer o seu pé de meia antes que o sonho acabe. ‹‹Sobe-se›› também por ter o apoio e apadrinhamento de determinados grupos de interesse, o que faz com que a sobrevivência governativa do nomeado se faça à custa da dimensão do agradecimento. É preciso agradar todos os grupos que aparentem estar próximos da decisão politica de o manter no cargo ou, em caso de demissão, de o voltarem a colocar na mesma única tômbola de onde, nestes 30 anos, se tiraram sempre os nomes dos governantes. Como, assim, pode haver tolerância zero?
Um primeiro passo a sair do congresso era acabar com a generalização. Passa-se a ideia errada que todos os governantes e directores são farinha do mesmo saco. Não são. Há gente que está no governo ou à frente de empresas públicas por mérito próprio e nem carrega a suspeição de ter ‹‹abonado›› dos bens e dinheiros públicos. Nós também sabemos quem são e os respeitamos mais por isso. Portanto, não confundir. É só puxar o novelo do princípio ao fim e veremos quem é que afinal precisa de tolerância zero.■
Fonte: SA, EDIÇÃO 344 · ANO VII, Sábado, 28 de Novembro de 2009.
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