As mais evidentes manifestações de amizade entre os bacongo e os portugueses, encontram-se expressas nas várias cartas trocadas entre Mbemba-a-Nzinga, rei do Congo e D. Manuel e D. João III, reis de Portugal.
Mbemba-a-Nzinga (1509-1540) assumiu os destinos do Congo após a morte de seu pai, Nzinga-a-Nkuvu, em 1506, tendo sido baptizado com o nome de Afonso. Através dele, missionários e artífices afluem de Portugal ao Congo, levantam-se igrejas, constroem-se habitações, modificam-se costumes, queimam-se feitiços, desenvolve-se o comércio e cultivam-se novos produtos.
Em 1504, o rei D. Manuel mandou uma missão à foz do Zaire que levava entre outras coisas muitos livros de doutrina cristã para serem usados no ensino dos mistérios e verdades da fé. Em 1508, seguiram para Lisboa o irmão de D. Afonso do Congo, D. Manuel e seu filho D. Henrique para serem educados no Convento dos Lóios.
D. Henrique acabou por ser nomeado bispo de Útica in partibus. Não obstante o mau comportamento de alguns missionários em 1514, várias escolas primárias e um internato para 400 jovens foram aparecendo no reino do Congo, sobretudo nas províncias do Súndi, Bamba, Bata e Pango.
Com a "descoberta" do Caminho Marítimo para a Índia, o reino do Congo passou a ser considerado um depósito de escravos, especialmente pelos portugueses de S. Tomé, que, oficialmente (por meio de decretos), dominavam este tipo de comércio na costa atlântica. Ralph Delgado, nos quatro volumes que escreveu sobre a História de Angola, uma edição do Banco de Angola, refere que nas duas primeiras décadas de contacto, 60 mil escravos foram retirados do Congo e que de 1506 a 1575 foram exportados 345 mil.
O próprio clero, enviado para evangelizar, a pedido do soberano africano, encontrava-se também envolvido no negócio da venda de escravos e a atitude de alguns sacerdotes tornou-se, durante o último período do século XVI, cada vez menos compreensiva. A título de exemplo citemos uma carta enviada pelo padre Garcia Simões, ao provincial dos jesuítas a 20 de Outubro de 1575: "Quasi todos tê por averiguado que a conversão destes Barbaros não se alcançará por amor, senão depois que por armas forê sogeitos e Vassalhos del Rei Nosso Senhor".
No entanto, a crença do rei do Congo, manteve-se inabalável. Veja-se o teor da Carta de D. Afonso do Congo, pedindo ao rei de Portugal que lhe enviasse 50 padres para serem distribuídos pelo seu reino e pelas terras que tinham senhorios, a fim de, em cada haver, um vigário e seis padres. As anotações, para facilidade de interpretação de cada uma das cartas, são da autoria de António Luís Ferronha.
Carta a pedir padres
"Senhor – Nós Dom Afonso por graça de Deus Rei do Congo e Senhor dos Ambundus e da conquista de Panzelumbos, [Ambundus e Panzelungus, é uma fórmula adoptada por D. Afonso para dizer que domina estas populações. Em relação aos Ambundus há documentos que permitem esclarecer que, efectivamente, estes estiveram dependentes do Congo, mas em relação aos Panzelungos, há dúvidas], etc. Com aquele acatamento que devemos, beijamos as Reais mãos de Vossa Alteza a quem fazemos saber que bem podemos haver quarenta anos pouco mais ou menos, que nosso Senhor por sua piedade e misericórdia nos iluminou e nos mostrou caridade e tirou da escravidão em que vivíamos, a qual mercê Nosso Senhor nos fez sua misericórdia e querer, que nesta teoria seja seu novo e fé louvada e exaltada, a qual esperamos em Nosso Senhor que para sempre será, pois foi servido de nos abrir o santo e bom caminho para salvação de nossas almas, e a Vossa Alteza queira acrescentar a vida real estado para que sustenha este reino e lha mande os unguentos medicinais para nossa solução e deste Reino e poucos que vivem em esperança que por desígnio de Vossa Alteza que por muitas vezes temos escrito a el-Rei seu pai, que santa glória haja, a grande necessidade que temos de muito padres que visitarem a grande redondeza deste Reino e senhorios, ser limpo de muita lepra e sujidade de idolatria que por ele há, por ser grande terra e não termos com que a limpemos, a saber muitos padres para estarem repartidos pelo reino e senhorios para nosso senhor ser servido e sua santa fé católica ser acrescentada e nós seríamos consolados, vendo o que tanto desejamos por vermos a necessidade que este reino tem, e vermos a multidão das almas que se perdem, as quais por desígnio de Vossa Alteza se salvarem, e ante Nosso Senhor alcançarem grande mérito, o que queremos que fará muito inteiramente, pois é a primeira mercê que lhe pedimos depois que é rei, assim Senhor que pedimos a Vossa Alteza por a morte e paixão que nosso Senhor padeceu pelos pecadores, que nos mande cinquenta padres que mais havemos mister [Apesar de um determinado silêncio da parte do poder português, D. Afonso continuou a corresponder-se com o sucessor de D. Manuel I, D. João III, apresentando a este um autêntico programa religioso. "Havia 40 anos que Deus o havia tirado da escuridão, mas acontece estarmos cinco a seis meses sem missa nem sacramento, porque os oficiais de V.A. o querem assim." denunciava este abandono religioso. D. Afonso pretendia 50 padres para os distribuir pelas terras que refere, antes de morrer, porque se sentia velho e cansado. Em resposta D. João III lamenta imenso a conduta deplorável dos padres residentes no território e "a má vida" que levavam.]. Mas por não darmos tanta opressão a Vossa Alteza não lhe pedimos mais para repartirmos pelo Reino e senhorios, e nos lugares em que maneira lhe queremos nomear alguns senhorios que há neste Reino os maiores que para nomear todos por extenso seria fazer grande leitura, e enfadar Vossa Alteza.
Um senhorio que se chama Sundy [Uma das províncias do Congo] em temos feito senhor um nosso filho por nome D. Francisco que é terra muito grande e de muita gente em que poremos um vigário com seis padres onde estarão providos e abastados de tudo necessário. – Outro senhorio que se chama Bamba [outra província do Congo] de que temos feito senhor outro nosso filho por nome D. Henrique [O rei começa por colocar os seus familiares como chefes das várias regiões], em que é muita gente e grande terra onde há mister estar um vigário e seis padres e do necessário serão abastados, e sempre serão ocupados por a terra ser grande e muita gente.
- Outro senhorio que se chama Banta de muito mais gente onde há mister de estarem menos de oito padres e um vigário de que temos feito senhor uma pessoa principal de nosso reino por (nome) D. Jorge a que muito queremos por bondade. – Outro senhorio que se chama Huembo de que temos feito senhor um irmão nosso por nome D. Pedro, grande terra e de muita gente que há mister vigário e seis padres. Outro Senhorio que se chama Pango [Banta, Huembo e Pango, eram regiões com uma certa importância política no Congo] que temos dado ao bispo [D. Henrique, filho do rei, primeiro bispo negro, bispo de Útica] nosso amado e prezado filho para seus gastos que é grande terra e muito abastada onde há mister bem um vigário, e seis padres: e não queremos mais nomear a Vossa Alteza por não fazermos prolixa escrita. É assim senhor que desta maneira os repartiremos por este reino, e os outros andarão e acudirão aos lugares de mais necessidade, para que com boas e santas palavras, os admoestem e tragam o verdadeiro conhecimento, e bem deve Vossa Alteza de crer a necessidade que deve ter gente rústica e simples que não sabe mais que viver e morrer e para lhe dar a entender a verdade de nossa Fé, é necessária serem ensinados e doutrinados por continuação de tempo até virem a verdadeiros reconhecimentos e salvação, e desta maneira senhor se farão muito fruto se salvarão muita multidão de almas que se perdem por míngua de padres, para estarem desta maneira que Vossa Alteza dizemos para que com o santo baptismo e doutrina de nossa santa fé se salvarem por amor de nosso Senhor lhe pedimos que se lembre de nós e deste seu reino que esperando está pela misericórdia de nosso Senhor e por os unguentos para nossas chagas que são muitos padres, de que tanta necessidade este Reino tem para sua salvação, e salvando-se tantas almas rogarão ante Nosso Senhor por sua alteza pois por seu designo se salvam, assim senhor que lhe pedimos pelas chagas de nosso Senhor que nos desamparem mas antes nos mande visitar muito mais, que rei seu pai fazia, que agora temos mais necessidade que nunca, por sermos já de muita idade estarmos no derradeiro quartel de vossa vida e não sabemos a hora que Deus será servido de nos levar para si, e levaríamos muito contentamento em nosso dias, se Vossa Alteza nos mandasse esses padres para que deixássemos este reino e senhorios pacíficos no amor em serviço de nosso senhor e portanto senhor nos mande muito padres que são os unguentos medicinais para as chagas que estes povos deste reino tem abertas, e para que o inimigo mau da alma não tenha poder nem vigor nenhum sobre as almas, que em sua mão de Vossa Alteza está o remédio, que esperamos que o nome de Jesus Cristo e sua morte e paixão nos guardarão e chegarão a estado de salvação.
Senhor por muitas vezes nosso filho bispo nos requer e pede que o deixemos ir visitar esse Reino, com estes poucos padres que consigo tem, que são quatro que para oficiar uma missa não bastam quanto mais para tão grande Reino, e nós o não queremos deixar ir porque o Reino é tão grande que para o visitar todo há mister muitos padres para o ajudarem, e irem com ele, e também andando pelo reino alongado de nós, nós tememos de no-lo matarem com peçonha o que seria para nós grande dor e sentimento e não viveríamos após ele, muito grande é filho a que temos grande amor e com ele recebemos muita consolação e assim todo este Reino, e portanto o não deixamos ir e por força o retemos que não vá, não por ele o não desejar muito e no-lo requerer por muitas vezes, e esta é a causa porque o não faz nem tem feito até aqui, assim senhor que para isto e para todo que nesta lhe pedimos Vossa Alteza que haja por bem virem seis padres da religião para estarem com o nosso filho o bispo porque se criou neles e recebe muita consolação tê-los em sua companhia que três da mesma ordem que consigo trouxe quando veio a feitura se foi um para Portugal e os dois ficam para cedo se irem também, saiba Vossa Alteza o que de cá levam a si estes padres como todos os outros que a nosso reino vêm, e saberá Vossa Alteza e má companhia que de nós recebem em nosso reino a qual havemos de fazer e quanto nos Deus der vida: Nosso Senhor acrescente a sua vida e Real estado a seu santo serviço ámen, escrita em nossa cidade do Congo, a dezoito dias do mês de Março de mil quinhentos vinte e seis anos. D. João Teixeira escrivão da puridade a fez. [Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Corpo Cronológico, parte I, Maço.33, Doc.121]
Baltazar de Castro
O facto da região de Luanda ser favorável ao resgate de escravos, fornecer na altura uma concha com valor fiduciário, chamada nzimbu e, segundo informações da época, ser rica em prata, ferro e cobre, constituiu motivo suficiente para que os portugueses, tal como no reino do Congo, desejassem cristianizar também o Ngola e os seus súbditos e estender os seus interesses comerciais ao reino do Ndongo. Ao tempo do monarca D. Manuel, foi enviado Manuel Pacheco, como capitão do navio, e Baltazar de Castro, como escrivão, para contactarem Ngola Inene, no sentido de o evangelizarem, tal como as suas gentes.
O soberano português afirmava que embaixadores do reino do Ndongo haviam chegado ao reino do Congo e tinham lá informado, que este Ngola desejava cristianizar-se. Mas, Baltazar de Castro, após ter chegado à Kabasa – a "capital" itinerante dos ngola-a-kilwanji – foi preso, dado que não tinha sido aquele potentado que havia enviado embaixadores ao rei do Congo. Este, porém, não deixou de intervir, mandando um padre para converter o Ngola e um emissário para solicitar a libertação de Baltazar de Castro. O Ngola fez-se cristão, mas, segundo Felner, "depois sucederão cousas que deyxou de ho ser." Ao fim de seis anos, Baltazar de Castro, saiu do cativeiro, tendo chegado nu ao Congo, depois de ter passado por várias outras vicissitudes. Eis o que ele relata na sua carta de 15 de Outubro de 1526, ao rei D. João III:
"Senhor. Baltazar de Castro [Baltazar de Castro tinha sido enviado por D. Manuel com um regimento para "descobrir" o "reino" de Angola conjuntamente com Manuel Pacheco, que partiram em 1520. Este desembarcou no Cuanza e dirigiu-se à embala (residência) de Ngola Inene, que não recebeu o baptismo] reposteiro da câmara e cama que fui dél-Rei vosso pai que santa glória, faço saber a Vossa Alteza que el-Rei do Congo me tirou de cativo do poder de Angola [É importante porque é B. de Castro que denuncia o mito das serras de prata (serra de Cambambe): «As quais eu em seis anos na dita terra estive nunca vi» (A. Felner, Angola, p.97).], vim ter a esta cidade, no derradeiro dia do mês de Setembro de mil quinhentos e vinte seis, e el-Rei me deu de vestir que vinha nu, e aqui achei roupa, que minha fazenda era tomada ou embargada por Vossa Alteza, e se assim é, foi por falsa informação que naquilo em que me el-Rei vosso pai me encarregou e o servi com muita verdade e lealdade, do que eu esperava muita mercê porque a merecia e mereço como farei certo.
Angola matou o embaixador [O N’Gola que por corruptela originou Angola, tendo conhecimento do procedimento dos portugueses no Congo, hostilizou a presença destes no seu território. Para o estudo dos primeiros contactos entre portugueses e ambundu, são importantes as duas cartas de António Mendes, publicadas por A. Brásio (M.M.A, vol. II, docs, 171 e 173), e as do padre Gouveia (M.M.A., vol. II, docs. 179 e 180)] que lá foi a Vossa Alteza com e o porque em algum tempo o saberá Vossa Alteza, a minha detença em Congo é porque el-Rei do Congo mandou um homem Angola para que me tirasse e um clérigo para o fazer cristão, foi-o e depois sucederam coisas que deixou de o ser [o N’Gola recusou o cristianismo] as quais Vossa Alteza saberá pelo tempo, porque este homem que el-Rei de Congo lá mandou fez coisas por onde tudo se tornou a perder como digo e assim se tornou e me fez ficar a mim e eu escrevi o que se passava a el-Rei do Congo e que tivesse este homem até que eu visse, e el-Rei fê-lo assim, eu tive maneira para sair e chegando a esta cidade, tinha este homem dada fama de mim que eu era mouro e outras coisas e achei fama que ele diria que vira serras de prata na terra de Angola e pedras e outras coisas as quais eu em seis anos que na dita terra estive nunca vi porque [Desfaz o mito da prata em Angola, mas mesmo assim continua a ser alimentado pelos Jesuítas, que estavam interessados na conquista de Angola] o que da terra soube e o que nela há isso escrevi por Manuel Pacheco [este foi para Angola com Baltazar de Castro em 152.
O regimento que levaram era bem claro: "Outro sim, somos informado que no dito reino d’Angola há prata, porque se viu umas manilhas que vieram do rei do Congo, trabalheis para saber donde é a dita prata e assim de quaisquer outros metais"] quando me nela deixou, e isso aí agora e no mais assim que foi necessário tirar-se isto tudo a limpo pelo qual começamos demonta a qual acabada e tudo tirado a limpo me parece que el-Rei do Congo me deixara ir e mandará a certeza a Vossa Alteza de tudo, e porque el-Rei do Congo me parece quer pôr em obra descobrir o que há por este Rio acima e tem muita certeza de se poder navegar e o que el-Rei mais certo tem sabido e creio o escreve a Vossa Alteza, pelo qual peço a Vossa Alteza escreva a el-Rei do Congo que me encarregue deste descobrimento, porque me parece que se me na mão cair eu o tirarei a limpo com Vossa Alteza verá pois a tantos anos que isto está cego e se é alguma coisa saber-se-á. E se não é nada que se caiba no que receberei mercê. Angola se queixa muito do barão e de D. Pedro de Castro, e quando lhe vem a vontade também diz de (…) escrita a quinze de Outubro de 1526. - Nosso Senhor acrescente a vossa e Real estado a Vossa Alteza. - "Baltazar de Castro".
No verso desta carta lê-se o seguinte: "Para el-Rei Nosso Senhor" Arquivo nacional da Torre do Tombo, gav.20, Maç.4, Doc 21.
*Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais
Fonte: http://jornaldeangola.sapo.ao/17/0/mbemba-a-nzinga_um_rei_devoto
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