Muitos militantes do MPLA espantaram-se ao ver o nome de Tchizé dos Santos na lista de candidatos a deputados do partido. Também fui assolada pelo espanto. Pensei logo que havia, no seio daquela formação política, outras tantas pessoas cuja militância era mais visível e o nível de intervenção pública muito mais profícuo que o da personalidade em causa. As preferências, julgava eu, recairiam para essas pessoas, quando chegasse a hora da escolha dos representantes do povo, conforme os critérios do MPLA. Mas não foi.
A opção recaiu, entre outros tantos repescados sabe-se lá como e onde, para uma jovem de quem nunca ouvi, sequer, uma declaração, por mais curta que fosse, em nome do partido. Tinha ouvido,de facto, o nome dela. Ouvi-o mais por ser filha do Presidente da República, por estar ligada ao glamour, ao jet set e, claro, pelo seu deslumbrante casamento.
Como militante do MPLA, sinceramente, não me lembro de ter ouvido falar, previamente, do desempenho ou da militância de Tchizé. Essa vertente era-me, completamente, desconhecida.
Muito antes disso, já tinha experimentado uma outra sensação de surpresa quando souben que Tchizé e o seu irmão Zedú foram bafejados – assim mesmo – pela sorte de uma qualquer fada madrinha, ao lhes ser passado para gestão, dizem, o segundo canal da Televisão Pública de Angola (TPA).
Foi mesmo assim: sem concurso público, sem nada. De dia para noite, os angolanos foram informados sobre uma negociação que transferiu, para uma empresa privada, a gestão de uma empresa pública ou, pelo menos, de parte dela.
Desta vez o meu espanto é, ainda, maior. Nas páginas do Semanário Angolense li um comunicado rubricado pela ilustre deputada. Uma raridade. Já li comunicados atribuídos à mesma pessoa na Internet.
Na imprensa, quanto mais privada, posso ter lido, até, um ou outro. Mas essa também não é, ainda, a razão do meu espanto. Fiquei boquiaberta ao ler, no texto da página 42 da edição 292 do Semanário Angolense, a palavra ética bem timbrada no comunicado de Tchizé. Li e reli o texto.
Não haviam dúvidas, a palavra aí estava: ética. Defende, a deputada, que a sua intervenção no Parlamento, a respeito da sangria de quadros que esteve à porta da Televisão Pública de Angola (TPA), foi movida por um sentido de ética e de cidadania também. Disse Tchizé dos Santos no aludido documento que apenas propôs, na sessão parlamentar em que interveio, que «o Estado defendesse os seus interesses e o dos seus cidadãos, aquando da atribuição de licenças de Comunicação Social».
Engraçado. Sobretudo porque não me lembro ter ouvido, de Tchizé, aquando da mudança relâmpago da gestão do canal 2 da TPA, uma referência por mais mínima que fosse à ética.
Nem mesmo a ouvi falar de ética a quando do surgimento, inesperado, do seu nome na lista de candidatos a deputados pelo MPLA. Concluo, portanto, que há uma condição suficientemente forte para permitir que a jovem Tchizé caminhe, ao mesmo tempo, em ambos os sentidos de uma mesma faixa de rodagem.
Ao mesmo tempo que anda em contramão em relação à ética, lá está ela a defender, ferrenhamente, o seu sentido ético. Alguém consegue compreender? Nem eu. Por isso, dizia, entendo que há uma força que permite à Tchizé fazer tudo isso e mais alguma coisa. E essa força, essa condição que a coloca, digamos, numa posição de super-poderosa é o facto de ser filha do Presidente da República.
Em países onde se respeita a ética, isso tem um nome: tráfico de influências. Mas logo me desperto e percebo que estou em Angola, onde a cartilha de ética parece bem diferente da que é usada noutras latitudes. Lembrei-me, por ocasião de tudo isso, de um artigo de Mia Couto inicialmente publicado no Semanário Savana, em Moçambique, reproduzido pelo Novo Jornal e pelo Folha 8, em Angola, e, rapidamente, difundido pelos diferentes blogues de língua portuguesa na Internet.
«E se Obama fosse africano?», questionava o texto daquele bem-sucedido escritor moçambicano, a respeito da eleição (as nossas presidenciais estarão a caminho?) do novo Presidente dos EUA. Para o caso da deputada Tchizé dos Santos eu, inspirada em Mia Couto, inverto a pergunta: e se ela não fosse filha do Presidente da República?
1 - Se Tchizé não fosse filha de quem é viveria, se calhar, na Vila da Mata ou num outro bairro suburbano qualquer, sem electricidade, nem água corrente. Teria de madrugar todos os dias para ir à escola, andar, a pé, uma longa distância até à primeira paragem de táxi. Viajaria apertada, feita lata de sardinha, numa viatura para 12 pessoas, mas lotada com 24.
Teria de enfrentar, nestas condições, um pesado congestionamento de trânsito até chegar, enfim, à escola, exausta para receber a notícia de que não haveriam aulas. Motivo: os professores estariam, então, em greve. Estudaria, assim, nestas condições, aula sim, aula não até concluir o ensino médio, no Instituto Médio de Economia de Luanda, quem sabe, cursando jornalismo.
2 – Se não fosse filha de quem é e quisesse abrir uma publicação, teria de enfrentar a burocracia no Ministério da Comunicação Social. Andaria de cima para baixo em busca de uma licença e fi caria, ali, de mão estendida a espera de publicidades que seriam facilitadas conforme a conveniência política.
E quando abrisse, finalmente, a publicação, teria de enfrentar interrogatórios na Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC). Só com muita sorte não iria para a cadeia. Mesmo assim, seria impossibilitada de efectuar a cobertura de actividades oficiais como as reuniões do Conselho de Ministros ou as deslocações de governantes ou mesmo do próprio Presidente da República.
3 – Ficaria frustrada quando o Presidente do seu próprio país se referisse a jornais, feitos na base de muito sacrifício, como meros pasquins e não entenderia a razão de tanta perseguição a jornalistas num país que se diz democrático. Não entenderia os preços absurdos praticados pelas gráficas, tão pouco a falta de incentivos a pequenos empresários da comunicação social privada que são, no entanto, grandes empregadores.
Tentaria, até, abrir uma revista do género Caras, mas as barreiras aduaneiras inviabilizariam a respectiva impressão no país, ao menos que se predispusesse a ignorar, simplesmente, a periodicidade com a qual se firmou um acordo com os leitores.
4 – Passaria por tudo isso e por muito mais, claro, se com o esforço de uma mãe quitandeira conseguisse entrar na escola, fazer o curso de jornalismo e evitar o destino triste de muitas filhas de gente anónima que não têm alternativa senão entregarem- se ao subemprego no Roque Santeiro ou, quem sabe, deixarem-se levar por uma sorte bem pior que esta. Felizmente, para ela sobretudo, Tchizé dos Santos é filha de quem é.
Tem, à partida, uma vantagem em relação aos demais cidadãos que não puderam usufruir de tudo o que ela beneficiou e beneficia pela condição social do seu pai. Mas nem isso lhe dá o direito de espezinhar do jornalista vítima de um sistema mal concebido, altamente responsável pelas debilidades apresentadas por quem não teve a oportunidade de rumar para o estrangeiro e fazer uma formação de melhor qualidade, ou do coitado do empresário da comunicação social travestido de corredor de obstáculos, na tentativa de saltar sobre todas as barreiras que lhe são impostas por um Estado que, longe de defender os interesses do povo, está mais para satisfazer os apetites de uma minoria abastada.
É isso que precisa de mudar neste país, e gostaria, enquanto angolana, de contar com a influência, «com a dedicação ao povo e à juventude» tão propaladas pela senhora deputada. Será que posso?
Por Cláudia Francisco
Fonte: SA / Angola24horas.com
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