quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Os caminhos históricos das fronteiras de Angola - III


Professor doutor Marques de Oliveira

ARTIGO III

A questão teve origem nos termos da Convenção de Lisboa de 25 de Maio de 1891, que fixou geográficamente a fronteira no alto Cassai e lago Dilolo, situando este último na linha divisória das águas do Zaire e do Zambeze, e definindo por limite um afluente do Cassai, que (pensavam os delimitadores), nascia no lago Dilolo. Art. I, 3º “...Pelo thalweg do Cassai, desde o ponto de encontro deste rio com a linha de demarcação mencionada no parágrafo precedente, até à foz do seu afluente que nasce no lago Dilolo; e pelo curso deste afluente até à sua origem”.

Quando se constatou que os signatários da convenção de 25 de Maio de 1891 tinham cometido um erro geográfico, por se haver reconhecido a inexistência do afluente do Cassai “que nasce no lago Dilolo”, o Governo português estimou, em 12 de Abril de 1907, que a “interpretação mais lógica...seria tomar como fronteira o afluente do Cassai cuja nascente se encontra mais próxima do lago Dilolo. Este rio é sem dúvida o que tem a sua origem em Cha-calumbo” (1).

O Estado Independente comunicou por carta, a 25 de Maio, que aceitava a interpretação, exprimindo ao mesmo tempo o desejo de ter acesso ao lago Dilolo, propondo nesse sentido o prolongamento da fronteira desde a nascente desse rio determinado por Lisboa e o referido lago. A 6 de Agosto, o Governo português recusou essa proposta, por ser contrária ao espírito e à letra da convenção, na medida em que o art. I in fine (3º e 4º) refere o lago Dilolo apenas como referência da linha divisória das águas do Zaire e do Zambeze, a partir do qual essa divisória seria limite da fronteira. Constatando-se o erro geográfico, já que o lago Dilolo se situa na bacia do Zambeze, aproximadamente 36 Km a sul da linha divisória, essa referência já não tinha razão de ser.

O Ministro belga em Lisboa, Albéric Falon, informou, em carta datada de 10 de Fevereiro de 1910, ao Ministro português dos Negócios Estrangeiros, Eduardo Villaça, que o seu governo renunciava ao acesso ao lago Dilolo, sob condição de que o afluente do Cassai indicado pelo Governo português nas notas de 12 de Abril e 6 de Agosto de 1907...aquele que nasce perto de Cha-calumbo, isto é, o braço oriental do Luakanu... fosse mantido como ligação entre o Cassai e a linha divisória das águas do Zaire e do Zambeze.

A 15 de Abril de 1910, o Ministro português dos Negócios Estrangeiros comunicou ao Ministro belga em Lisboa o acordo de Portugal sobre essa interpretação da Convenção de 25 de Maio de 1891.

Resolvido o litígio, constituiu-se a comissão mista para a fixação dos limites no terreno. Os trabalhos de demarcação realizaram-se em conformidade com a Convenção de 25 de Maio de 1891, e o acordo de troca de notas de 30 de Abril e 2 de Junho de 1910, e concluíram com um protocolo datado de 18 de Setembro de 1915.

Entrementes, surgiram reivindicações por parte de Portugal: “...ao ser levantada a carta geográfica da região, reconheceu-se que, das águas indo ao cassai, a nascente mais próxima, por uma diferença de 15 quilómetros, não é a do afluente oriental do Luakeno mas a do rio Luao, que fica ao nordeste do lago Dilolo...” (2).

Nestes termos, para Portugal era o rio Luao que de facto deveria constituir o limite da fronteira, cuja nascente era preciso ligar à linha divisória das águas do Zaire e do Zambeze (3). Não obstante, tinha sido Portugal a propor inicialmente Cha-calumbo, e nessas circunstâncias, só lhe restava queixar-se de si próprio. Isso mesmo concluiu Alberto d’Oliveira, Ministro de Portugal em Bruxelas, nos interessantes comentários que fez em carta endereçada ao Ministro português dos Negócios Estrangeiros: “...Não foi a Bélgica que propôs Cha-calumbo, limitando-nos nós a aceitar. Foi Portugal que desde 1907 propôs esse afluente...

A troca de territórios Dilolo-M’Pozo. A convenção de Luanda de 22 de Julho de 1927.

Situado em pleno coração do continente africano, o Congo Belga enfrentava um obstáculo vital ao seu desenvolvimento económico: o acesso ao mar. O rio Zaire, decisivo nas comunicações da colónia com o Atlântico, revelou-se não navegável em todo o seu curso, nomeadamente na região das cataratas entre Matadi e Kinshasa. A aliar a este condicionamento, a solução alternativa, - a via férrea - desde cedo revelou inúmeras contrariedades de peso; podendo assegurar a ligação de Matadi a Stlanley Pool, e por conseguinte a circulação de pessoas e bens praticamente de toda a colónia com o Oceano através do porto de Matadi, desde logo se afigurou inviável face ao terreno extremamente acidentado que circunda toda a zona de Matadi, inclusive a própria cidade, ela mesma erigida sobre rochedos sucessivamente amontoados, justificando-se assim a sua designação... Matadi, que em português significa rocha. Daí, a impossibilidade do transporte ferroviário de grande tonelagem.

Acrescem outros dois significativos factores negativos. Por um lado, o canal fluvial entre Matadi e o mar. Por outro, as infra-estruturas dos portos de Matadi e Ango-Ango. O primeiro porque, os troços navegáveis, a jusante de Boma, exigem grandes e dispendiosos trabalhos de permanente drenagem, necessária à navegação regular dos navios de grande calado. O segundo, porque face à proximidade da fronteira angolana - Nóqui - os portos de Matadi e Ango-Ango não podiam ser suficientemente alargados para corresponder às exigências do volumoso tráfego em perspectiva. As consequências deste entupimento, obviamente que seriam desastrosas para todo o percurso ao longo do território congolês criando inúmeros pontos de ruptura.

Atenta a esta problemática, a Bélgica procurou melhorar as condições de acesso ao mar para a sua colónia. Nesse sentido, desenvolveu uma intensa actividade junto do Governo português, de forma a obter, numa primeira fase, a cedência da margem esquerda do rio Zaire, para aí construir um porto suficientemente capaz de responder melhor que Matadi; e posteriormente, como alternativa, uma porção de território do norte fronteiriço, para permitir a modificação do traçado da linha férrea nos primeiros 30 quilómetros.

As primeiras diligências do Governo belga foram encetadas em Agosto de 1919, em Paris durante a conferência de Paz.

A 29 de Julho de 1920, a Bélgica, através da sua Legação em Lisboa, apresentou oficialmente, pela primeira vez, a sua solicitação para modificação dos limites no Baixo Congo.

Tendo-se tornado urgente a transformação do caminho de ferro, o Governo belga desejaria estabelecer com o Governo português negociações tendentes à obtenção de uma modificação da fronteira no Baixo Congo nas condições que fossem convenientes para Portugal...” (4). Ainda que não mencionando explicitamente a zona pretendida, ao referir os contactos de Paris, o Governo da Bélgica indicava implicitamente a Bacia convencional do Zaire.

Apercebendo-se da intransigência de Portugal à cedência da margem esquerda do Zaire, o Governo belga mudou de táctica, e a 20 de Maio de 1922 apresentou nova proposta, cuidando de precisar a localização e a extensão do território.

“... A construção e a exploração da linha Matadi-Léopoldville beneficiariam de consideráveis vantagens de simplificação e de economia se o caminho de ferro pudesse, entre Matadi e Tumba, ser desviado do seu traçado actual, e se, para atingir a última destas localidades, pudesse contar com o vale do Mpozo, onde os obstáculos naturais são de pequena importância.

... Estas constatações decidiram o Governo belga a solicitar ao Governo da República Portuguesa a obtenção de uma rectificação do traçado actual da fronteira que permitisse à Bélgica obter, através da troca, o vale em questão, situado em território angolano a curta distância da fronteira congolesa e num sentido paralelo a esta...

... O empreendimento a fazer seria de pouca importância (aproximadamente 250 quilómetros quadrados) e naturalmente a Bélgica cederia a Portugal, em troca, uma faixa de terreno de valor equivalente àquela que Portugal consentisse em ceder-nos” (5).

Para a opinião pública, pelo contrário, a questão continuava a ser objecto de vivo debate.

A Revue Coloniale Belgo Portugaise, editada por dois prósperos comerciantes portugueses de Bruxelas (Povoas & Noronha), encarregou-se de dinamizar esse debate, solicitando e publicando opiniões defendidas, quer na Bélgica, quer em Portugal. Não obstante o seu caracter particular, essas opiniões veiculavam assim mesmo, as preocupações e até mesmo as posições de alguns meios oficiais. G.

Dryepondt, “um dos pioneiros” da colonização belga, pronunciando-se a respeito da colaboração entre os dois países considerou que “...os laços que unem as duas colónias e os dois povos poderiam ainda tornar-se mais estreitos por uma “entente” territorial que, longe de lesar uma das partes, apresentaria vantagens incontestáveis para cada uma delas” (6), exemplificando, Dryepondt evocou a necessidade do Congo Belga construir um porto na margem esquerda do rio Zaire, onde pudessem atracar os navios de grande calado, e donde pudesse partir um caminho de ferro em direcção a Stanley Pool.

Encorajado pela opinião pública cada vez mais entusiasta e participativa, e estimulado pelo discurso activo e generalizado de aproximação dos dois países, o Governo belga decidiu reatar a ofensiva diplomática, instruindo nesse sentido a sua Legação em Lisboa, que em cumprimento fez entrega no Ministério dos Negócios Estrangeiros, a 20 de Maio de 1926, de uma nota formal nestes termos: “O Ministro da Bélgica foi encarregado pelo seu governo de se aproximar de sua Excelência o Ministro dos Negócios Estrangeiros da República e de o sondar no sentido de saber se a ideia de uma maior aproximação entre os dois países no terreno colonial, ideia que encontrou na Bélgica uma simpatia generalizada, é encarada de maneira igualmente favorável pelo Governo português.

A mútua boa vontade dos dois governos poderia neste caso traduzir-se pela reunião de uma Conferência, ou, de preferência, de uma Comissão restrita, que examinaria os problemas de ordem colonial comuns a ambos os países...a comissão teria que examinar por exemplo:
- as questões sanitárias; do regime de trabalho; da construção de vias de comunicação; do abastecimento dos brancos e dos indígenas; da luta contra epidemias e o alcoolismo; da unificação das medidas fiscais.

- finalmente se, no interesse dos dois países, certas rectificações de fronteiras - ajustamentos - não seriam possíveis. Destes existe um que interessa particularmente ao Governo belga e que é mesmo urgente, sob pena de deixar de apresentar para ele qualquer interesse: trata-se de uma rectificação que envolve um território de aproximadamente 3 quilómetros quadrados, que permite a construção da nova via férrea Matadi-Léopoldville evitando trabalhos consideráveis - consequentemente muito dispendiosos -, se a via se limitasse a permanecer no território actual do Congo belga. A rectificação incidiria sobre um território sem valor material nem político no qual não existem pessoas nem árvores, planície pequena e pobre onde só existem pedras. Mas se a reconstrução do caminho de ferro avançar, a escolha do traçado definitivo deve ser fixada e a questão resolvida daqui a dois ou três meses, sob pena, como foi dito antes, de deixar de ter interesse para nós...” (7).

É significativa a sequência regressiva das proporções dos pedidos da Bélgica. Em 1919, pretendiam toda a bacia convencional do Congo ou no mínimo, toda a margem esquerda do rio Zaire, em 1922 almejavam cerca de 250 quilómetros quadrados, e em 1926, um “terreno” de 3 quilómetros quadrados.

Diante desta evidência, a posição de Portugal modificou-se, tendo para tal contribuído bastante Alberto de Oliveira, novo Ministro de Portugal em Bruxelas, que numa primeira apreciação aos problemas coloniais pendentes entre a Bélgica e Portugal, opinou ao Ministro dos Estrangeiros, Bettencourt Rodrigues:
“... Porção mínima de solo português, um simples retoque da linha fronteiriça.
...Perder esta ocasião, e deixar cair pouco a pouco a conversa, penso que seria caminho errado...

Parece pois que nos cumpre indagar de nós próprios o que queremos, o que temos a pedir, em troca do que com tanta insistência nos é solicitado e que porventura, em determinadas circunstâncias e condições seria imprudente não deferir” (8) .
O Governo português acolheu as reflexões do seu diplomata, reunindo no dia 19 de Julho de 1926 no Ministério das Colónias para avaliar a resposta à solicitação belga. No final, o contra-almirante Gago Coutinho, presidindo a comissão de cartografia, pôde fazer prevalecer e adoptar o ponto de vista segundo o qual, Portugal devia exigir em troca dos três quilómetros quadrados pedidos pela Bélgica, um território de 3.000 quilómetros quadrados, situado na região do Dilolo.

No dia seguinte à reunião, João Belo, Ministro das Colónias, explicitou por carta o ponto de vista do seu Ministério, ao Ministro dos Estrangeiros Bettencourt Rodrigues:
“Como prova de moderação, sinceridade e lealdade de bons vizinhos, julgo, como Ministro das colónias, dever manter a opinião que manifestei, para ser considerado aquele pedido belga de rectificação de fronteira (classificação feita no próprio memorandum), entre os rios Mpozo e Duizi. O Governo português mostrar-se-ia assim animado das melhores intenções de facilitar ao Congo Belga a saída do seu comércio para o rio Zaire, e portanto para o mar.

Sendo esta concessão de grande vantagem para o Congo Belga, parece-me que o Governo português deve propor em troca a concessão de outra vantagem equivalente para nós, a qual, no fundo, correspondendo à cessão de uma área de terreno de 3.000 quilómetros quadrados, não é mais do que a restituição daquilo que, segundo o espirito do Tratado de 1891, deveria fazer parte da nossa Província de Angola.

Trata-se da região ao norte do Lago Dilolo, entre os rios Luao e Cassai...” (9).
Bettencourt Rodrigues encarregou então o diplomata português em Bruxelas de “sondar o Governo belga, de maneira a averiguar até onde ele estaria disposto a ceder” (10).
Em consequência, Alberto de Oliveira exprimiu ao Governo belga o ponto de vista de Portugal: “... Portugal deixou indevidamente atribuir ao Congo Belga o território compreendido entre o Luao e o Luakeno... parece imperativo que o Congo belga restitua a Angola a porção de território que, por desconhecimento do terreno e contrariamente ao acordo prévio concluído entre os dois governos lhe foi atribuída” (11) .

O Ministro belga dos Estrangeiros recusou liminarmente a proposta. “O governo belga deve declarar, em primeiro lugar, que não está em condições de ceder a Portugal a região de Dilolo nos termos em que este território é delimitado pelo memorandum de sua Excelência o Ministro de Portugal. A troca sugerida pelo Governo de Lisboa ultrapassaria certamente o estrito quadro de uma rectificação de fronteiras e a opinião pública belga não admitiria que o governo se prestasse ao abandono de um território de mais de 3 000 quilómetros quadrados...

... De resto, não parece ao Governo belga que convenha examinar nesta ocasião toda a questão das fronteiras da região de Dilolo, que pode ter sido antigamente objecto de controvérsia, mas que nunca mais foi levantada desde 1910, época em que teve lugar um acordo entre os dois governos...

... No entanto, tendo em conta as intenções favoráveis do Governo português e a economia que resultaria, no estabelecimento da linha de Matadi a Léopoldville, de um acordo entre os dois países, o Governo belga considera possível propor ao Governo português a escolha de uma entre três soluções às quais está pronto a aderir de acordo com as preferências de Portugal:
1º) O abandono por parte do Governo belga de um território próximo daquele que o Governo português cederia à Bélgica...
2º) O abandono por parte do Governo belga, nas mesmas condições, de um território na região de Lubizi, a sul de Popokabaka...
3º) No caso de as preferências do Governo português se prenderem com a região dita de Dilolo, o Governo belga estaria disposto a procurar o meio de as satisfazer, procedendo a uma rectificação de fronteiras neste ponto, de maneira a transferir, para a soberania portuguesa, um território de uma extensão cinco ou seis vezes superior à do território cedido, sempre que os interesses legítimos das populações indígenas e os direitos adquiridos pelos cidadãos belgas não constituíssem obstáculo...

... O Governo belga declara que as suas propostas apenas são susceptíveis de ser consideradas durante um período de três a quatro semanas. Expirado este prazo, elas deixam de apresentar qualquer interesse. Os trabalhos do caminho de ferro têm progredido, com efeito, a ponto de atingir a região fronteiriça e a Companhia ver-se-á forçada a determinar daqui a muito pouco tempo o traçado definitivo...

... No caso de o Governo português estimar não dar acolhimento às aberturas do Governo belga, a linha de Matadi a Léopoldville não poderá prosseguir os seus trabalhos senão em território belga, beneficiando de prospecções recentes que felizmente permitirão reduzir sensivelmente as despesas previstas” (12).

O tom manifestamente pretensioso que se infere do documento diplomático belga desencadeou a reacção mais previsível do Governo português: “... O Governo procedeu ao estudo deste pedido com o mais vivo desejo de ser agradável ao Governo belga e sugeriu-lhe compensações que, no entender dos seus conselheiros técnicos, talvez pudessem tornar aceitável, pela opinião pública portuguesa, a ideia de uma eventual cedência territorial. O Governo belga não ignora, sem dúvida, quão vivas e, aliás, legítimas são as apreensões e mesmo as susceptibilidades portuguesas nesta matéria e até que ponto o princípio da intangibilidade das fronteiras se encontra na base de toda a nossa política colonial...

... No entanto, ainda que os dois governos conseguissem chegar a um acordo sobre o ponto de partida sugerido para eventuais negociações, o caracter de extrema urgência que elas assumem para a Bélgica não permite esperar que se atinja a tempo uma solução prática...

... O Governo português lamenta sinceramente mais uma vez não estar em condições de satisfazer o pedido da Bélgica, apesar de toda a sua boa vontade, e sente-se feliz por saber que os Caminhos de Ferro do Congo conseguiram encontrar outras soluções aceitáveis em território belga, como a nota de 21 de Agosto parece fazer prever...” (13).

Apesar do arrefecimento notório nas negociações para a troca de territórios, mantinha-se acesa a chama de aproximação Luso-Belga em matéria de política colonial, e nesse sentido, o Governo português manifestou o seu acordo à realização de uma conferência entre os dois países, sugerindo para tal, que uma comissão restrita preparatória se reunisse em Lisboa.

A resposta belga denotou alguma desolação revelando assim mesmo uma certa expectativa:
“... O Governo belga não pode senão lamentar que o Governo português não tenha conseguido satisfazer o pedido da Bélgica a respeito de uma rectificação da fronteira na região do Mia...

... Nestas condições, a reunião de uma conferência Luso-Belga para estudo do conjunto dos problemas de ordem colonial comuns a ambos os países já não apresenta para a Bélgica o mesmo caracter de urgência; no entanto o Governo belga continua a acreditar na oportunidade de reunir a referida conferência...” (14).
A perseverança da Bélgica foi recompensada. Os bons ofícios dos canais diplomáticos diligenciaram a realização em Lisboa de 6 a 10 de Dezembro da I conferência Luso-Belga.

A II conferência Luso-Belga teve lugar em Luanda, de 16 a 22 de Julho de 1927. Portugal fez-se representar por António Vicente Ferreira, Governador-Geral de Angola, e Ernesto Júlio de Carvalho e Vasconcelos, assistidos por três delegados técnicos. Pela Bélgica, foram delegados plenipotenciários, Martin Rutten Governador-Geral do Congo Belga, e Félicien Cattier, assistidos por três delegados técnicos.
Aprovaram-se quatro convenções. A primeira, assinada a 19 de Julho regulamentou uma política sanitária comum. A segunda, assinada a 20 de Julho, estabeleceu mecanismos para: comunicação rodoviária entre as duas possessões; construção da barragem do M’pozo em território congolês; repressão do contrabando de armas de fogo e munições; regime aduaneiro. A terceira convenção estipulou a circulação ferroviária de pessoas e bens no Caminho de Ferro de Benguela.

A quarta convenção, assinada a 22 de Julho, veio finalmente consagrar a tão almejada rectificação de fronteiras “... no desejo de mutuamente darem uma demonstração de boa vizinhança e de favorecerem a valorização dos seus respectivos territórios”, Portugal e a Bélgica acordaram numa troca de territórios nos seguintes termos:

Artigo I

A Bélgica cede a Portugal, em plena soberania, a parte da Colónia do Congo Belga compreendida pelos seguintes limites:
A fronteira actual entre a confluência do Cassai com o Luakano até o ponto mais próximo da origem do rio Luao, nas proximidades do marco 25;
Uma linha recta deste ponto até a origem do Luao;
O rio Luao até a sua confluência com o Cassai;
O Cassai para montante desde essa confluência até a do Luakano.
A superfície aproximada deste território é de 3500 quilómetros quadrados.

Artigo II

Portugal cede à Bélgica, em plena soberania, a parte do território de Angola compreendida pelos limites seguintes:
O rio M’pozo desde o ponto em que deixa de formar a fronteira Luso-Belga, junto do marco 10 (embocadura do Mia), até à embocadura do rio Duizi, que fica a cerca de 2.300 metros a montante daquele ponto;

O rio Duizi a montante da sua confluência com o M’pozo até à fronteira actual;
A fronteira actual entre o Duizi e o M’pozo, passando pelos marcos 10 e 11.
A superfície aproximada desta porção de território é de três quilómetros quadrados.
Esta quarta convenção cujos princípios (troca de terrenos), não constava nem de perto nem de longe, nem no espírito nem na letra, das resoluções aprovadas na primeira conferência de Lisboa, só se explica à luz de factores supervenientes, que decorreram à margem dos trabalhos da conferência.

No quadro dos preparativos da conferência de Luanda, o Ministro Português das colónias enviou um telegrama ao Governador-Geral de Angola, informando-o, entre outras coisas, da existência de um “alvitre belga sem carácter oficial para troca cento e oitenta quilómetros quadrados terrenos junto M’pozo por Dilolo” (15). Em via disso, como precaução, o Governador Vicente Ferreira decidiu enviar uma missão de reconhecimento à região do M’pozo para avaliar o terreno do ponto de vista geológico e hidrográfico. Este procedimento cautelar revelou-se de grande utilidade já que, se “até a data da conferência, os delegados portugueses encontravam-se sem instruções sobre a atitude a tomar, no caso dos delegados belgas abordarem o assunto, estes, pelo contrário, e segundo se demonstrou depois, vinham munidos de instruções e autorizações para fecharem qualquer acordo sobre a troca de terrenos” (16).

Porém, foi à margem dos trabalhos da conferência propriamente dita que os delegados belgas, aproveitando uma oportunidade preciosa, lançaram a derradeira ofensiva diplomática. No decorrer de um encontro privado realizado a 17 de Julho, entre os Governadores do Congo e de Angola, Vicente Ferreira manifestou a sua veemente indignação face ao conteúdo de um artigo publicado pouco antes por Jules Tilmant, reflectindo sobre os resultados da conferência de Lisboa ,o que, na opinião do Governador de Angola, pela sua impertinência era susceptível de prejudicar os objectivos da Conferência de Luanda, não obstante ter sido o referido artigo prontamente rectificado, em circunstâncias idênticas de publicação, por meritosa intervenção do diplomata português em Bruxelas. A abordagem de Vicente Ferreira ao tema, reacendeu a controvérsia. No dia seguinte, 18 de Julho, Martin Rutten solicitou a Vicente Ferreira uma reunião entre os quatro plenipotenciários para conversarem sobre os artigos em questão. Ao que parece, a reunião decorreu numa atmosfera de grande tensão. À saída, Vicente Ferreira expediu o seguinte telegrama ao Ministro das Colónias:
“Rutten Cattier abordaram particularmente questão troca terrenos M’pozo Dilolo insistindo Cattier necessidade tomar resolução imediata para troca ter interesse Bélgica acentuando ou aproveitamos agora oportunidade troca ou este assunto não voltará discussão outra ocasião PONTO Mandei engenheiro visitar M’pozo mas ainda não regressou todavia opinião pessoas conhecem região terrenos pedidos nenhum valor intrínseco apenas reduzir despesas primeiro estabelecimento caminho ferro PONTO Minha opinião convém aceitar peço Vxa favor comunicar este telegrama Ministro Estrangeiros mandar instruções urgentes... se governo julgar conveniente extra acordo em discussão... (19).

Lisboa respondeu prontamente:
“... Conselho Ministro hoje resolveu autorizar Vxa... negociar ad referendum extra acordo discussão troca três quilómetros quadrados terreno M’pozo por Dilolo pelo menos antiga zona litígio esta região se engenheiro mandou visitar M’pozo confirmar sem valor intrínseco PONTO Escusado recomendar fazer Vxa reconhecer sacrificar excepcionalmente opinião governo não alienar ceder ou trocar seus domínios ultramar representar somente muito sincero desejo facilitar resolução problema comunicação caminho ferro demonstração amizade Bélgica relações boa vizinhança duas colónias PONTO” (20).

Poucas horas após a reunião dos quatro plenipotenciários, a 18 de julho, chegou a Luanda o engenheiro enviado à região do M’pozo. O Relatório de prospecção veio confirmar a inexistência do “valor intrínseco” do território e a sua adequação ao novo traçado da via férrea Matadi-Léopoldville.

Enfim, a 22 de Julho de 1927, os quatro plenipotenciários assinaram a famosa convenção sobre a troca dos territórios, cedendo Portugal à Bélgica três quilómetros quadrados entre o rio M’pozo e o rio Duizi, no norte de Angola, próximo de Matadi, e recebendo em troca a “bota de Dilolo”, um território de 3.500 quilómetros quadrados situado entre o rio Cassai e o rio Luao, no extremo Sudoeste da Colónia Belga.

A ratificação da convenção de Luanda teve lugar a 2 de Março de 1928, e a cerimónia oficial da cessão da “ bota de Dilolo” celebrou-se a 15 de Maio do mesmo ano (21). Se para a Bélgica a troca de territórios fora ditada por uma necessidade de ordem exclusivamente económica, para Portugal constituíra antes um assunto que dizia respeito à sua história, aos seus anais, ao amor próprio e à soberania (22).

(*) Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa em Ciências Jurídico Políticas na vertente de Direito de Fronteiras terrestres e Marítimas e especialista em Delimitação de Fronteiras. Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto e da Universidade Católica de Angola, Decano da Faculdade de Direito da Universidade Metodista de Angola.

(1) A.M.N.E.; cota 3º piso; armário n.º9, maço 13. Nota do Ministro de Portugal em Bruxelas, Visconde Santo Thirso, ao Secretário Geral do Departamento dos Negócios Estrangeiros do Estado Independente do Congo, A. Cuvelar, Bruxelas 12 de Abril de 1907.
(2) Idem; Gago Coutinho, Memorandum reservado para elucidação das questões de fronteiras Angola-Congo, 10p. Lisboa, 21 de Julho de 1926.
(3) Frontière Belgo-Portugaise in "Le mouvement géográphique".
(4) Idem. Legação da Bélgica em Lisboa ao Governo português. Lisboa, 29 de Julho de 1920
(5) Idem. Legação da Bélgica ao Governo Português, Lisboa 20 de Maio de 1922.
(6) Revue Coloniale Belgo-Portugaise, n.º 13, Junho 1925, p.24
(7) A.M.N.E. 3ºP. A9 M13. Legação da Bélgica em Lisboa ao Ministro dos Negócios Estrangeiros. Lisboa, 20 de Maio de 1926.
(8) A. M. N: E: 3ºP A9 M13. Alberto d’Oliveira ao Ministro dos Negócios Estrangeiros Bettencourt Rodrigues, Bruxelas, 14 de Maio de 1926.
(9) A. M. N. E. 3ºP A9 M13. João Belo a Bettencourt Rodrigues, Lisboa, 20 de Julho de 1926.
(10) Idem. Bettencourt Rodrigues a Alberto d’Oliveira, Lisboa, 6 de Agosto de 1926.
(11) Idem. Legação de Portugal em Bruxelas ao Governo Belga, Bruxelas, 14 de Agosto de 1926.
(12) A. M. N. E. 3ºP A9 M13. Ministério Belga dos Negócios Estrangeiros ao Ministro de Portugal em Bruxelas, Bruxelas, 21 e Agosto de 1926.
(13) Idem. Legação de Portugal em, Bruxelas ao Ministério dos Negócios Estrangeiros Belga.
(14) Idem. Ministério Belga dos Negócios Estrangeiros à Legação de Portugal em Bruxelas, Bruxelas,11 de Outubro de 1926.
(15) Idem. Telegrama do Ministro das colónias ao Governador Geral de Angola, Lisboa, 25 de Maio de1927.
(16) Idem. "Relatório apresentado ao Governo da República Portuguesa pelos seus delegados plenipotenciários sobre os trabalhos da II conferência Luso-Belga, que se reuniu em Luanda, de 16 a 22 de Julho de 1927", p.31.
(17) Essor Colonial et Maritime, 9 de Junho de 1927.
(18) Idem. 23 de Junho de 1927.
(19) A. M. N. E. 3ºP A9 M13. Telegrama do Alto Comissário da República e Governador-Geral de Angola ao Ministro das Colónias, Luanda, 18 de Julho de 1927.
(20) Idem. Telegrama do Ministro das Colónias ao Alto Comissário da República e Governador Geral de Angola, Lisboa, 19 de Julho de 1927
(21) O texto integral das quatro convenções assinadas durante a II conferência Luso-Belga realizada em Luanda de 16 a 22 de Julho de 1927, foi publicado no Diário do Governo de 5 de Março de 1928, I série, n.º 52 p. 409-419.
(22) M’Bambi Puna “ A colaboração Belgo-Portuguesa em Questões Coloniais: A Troca dos Territórios Dilolo-M’pozo entre Angola e o Congo Belga”, in Revista Internacional de Estudos Africanos n.º 8 e 9, Janeiro-Dezembro, 1988, p. 59-92.


Fonte: http://jornaldeangola.sapo.ao/20/0/os_caminhos_historicos_das_fronteiras_de_angola_1
Quarta, 02 de Dezembro 2009

Os caminhos históricos das fronteiras de Angola I
http://cangue.blogspot.com/2009/12/fronteiras-de-angola-e-evolucao.html

Os caminhos históricos das fronteiras de Angola II
http://cangue.blogspot.com/2009/12/os-caminhos-historicos-das-fronteiras.html

Os caminhos históricos das fronteiras de Angola III
http://cangue.blogspot.com/2009/12/os-caminhos-historicos-das-fronteiras_02.html

Os caminhos históricos das fronteiras de Angola V
http://cangue.blogspot.com/2009/12/os-caminhos-historicos-das-fronteiras_04.html

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