A Questão da Lunda ficou resolvida com a assinatura do Tratado de 25 de Maio de 1891
ARTIGO II - A questão da Lunda
Professor doutor Marques de Oliveira
Ainda assim, as fronteiras do enclave entre Angola e o Estado Livre do Congo não ficaram logo fixadas. Da Convenção de 14 de Fevereiro (art. 3º), surgiu não só a Questão da Lunda, mas também, e mais proximamente a Questão do Congo - outra Questão do Zaire. Quanto ao Congo (enclave de Cabinda), a questão começou propriamente com o incidente de Ponta Vermelha, por causa da sua ocupação militar por parte do Estado Independente, no penúltimo mês do ano de 1889. Portugal protestou por considerar a Ponta Vermelha território português. Van Eetvelde, administrador-geral dos Negócios Estrangeiros do Estado Independente do Congo, acordou em voltar ao statu quo ante, até que comissários dos dois governos, nos termos do art. IV da Convenção de 1885, definissem sobre o terreno, a fronteira comum, tal como Portugal propusera (1). Van Eetvelde pretendia que, não existindo a projectada comissão internacional do Congo, os dois governos acordassem acerca da maneira de substituir a sua eventual intervenção, antes de empreenderem o traçado da fronteira no terreno (2).
O Governo português aceitou a proposta. Por sugestão do Estado Independente do Congo, os governos acordaram, a 7 de Fevereiro de 1890, em “...fazer junto do Conselho Federal da Confederação Suíça as necessárias instâncias para, dada a hipótese de surgirem entre os comissários de limites dúvidas ou discordância de opiniões, ser aquele Conselho o juiz arbitral que, para o caso sujeito, (substituísse) no art. 4º da Convenção de 14 de Fevereiro de 1885, a comissão internacional do Congo, que não chegou a estabelecer-se” (3). O Conselho Federal Suíço aceitou o convite.
A despeito dos maiores ou menores desentendimentos dos comissários dos dois governos, na tarefa de demarcação, e apesar de longas, as negociações não se revelaram particularmente difíceis, e, em 25 de Maio de 1891, foi assinada em Bruxelas a longa Convenção que regula de maneira quase definitiva, com uma extraordinária abundância de pormenores topográficos, os limites de fronteiras não só na margem direita do Zaire, mas também entre a foz deste rio, na margem esquerda, e o Cuango (4).
Concluído o processo histórico da sua formação, ratificados os correspondentes instrumentos internacionais, os limites do enclave de Cabinda ficaram definidos:
Fronteira Norte e Nordeste: da foz do rio Zaire até à divisória das águas do Zaire e do Zambeze com o meridiano 24º Leste de Greenwich.
Fronteira Nordeste, desde a intersecção do paralelo 6º de Latitude Sul com o rio Cuango, até à da divisória das águas do Zaire e do Zambeze com o Meridiano 24º Leste de Greenwich.
A convenção de 1885 e a Questão da Lunda
A fronteira nordeste de Angola levantou enormes dificuldades. Bem cedo o Estado Independente do Congo deixou transpirar os seus intentos de ocupar as terras do Mwata Yanvo. O art. 3º da Convenção de 14 de Fevereiro de 1885, interpretado de certa maneira, podia servir as suas reivindicações: “... o paralelo de Nóqui até à sua intersecção com o rio Cuango (Kuango); a partir deste ponto na direcção do Sul, o curso do Cuango (Kuango)”.
Foram estes dois últimos parágrafos que deram origem à chamada Questão da Lunda. A Bélgica e Portugal divergiam na sua interpretação. Segundo a Bélgica, a fronteira nordeste de Angola fixava-se no Cuango, identificando-se o seu traçado na direcção sul com todo o curso do Cuango; Portugal defendeu, quando o problema se levantou, que ela ia para além deste rio, seguindo o curso do Cuango apenas na região compreendida entre o paralelo de Nóqui e o de 6º de latitude sul.
A 10 de Junho de 1890, Henrique de Macedo Pereira Coutinho, Ministro de Portugal em Bruxelas, chamou a atenção de Hintze Ribeiro, Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros para o “importantíssimo facto político” que acabava de dar-se na Bélgica, qual era o de o presidente do conselho de Ministros e Ministro da fazenda, Bernaert, ter apresentado na Câmara dos Representantes, na sessão do dia anterior, um projecto de lei que punha à disposição do seu soberano rei uma quantiosa soma, que, por certo, iria utilizar para, “a título de explorações científicas e antiescravistas, (empreender) uma activa e enérgica campanha de ocupação e posse nos territórios da África Central que demoram a leste da parte ocupada e incontestada da nossa província de Angola (Lunda, Mwata Yanvo regiões do alto Cassai, etc.)” (5) .
O conde de Macedo tinha razão. No dia 9 de Agosto desse mesmo ano, o Boletim Oficial do Estado Independente do Congo publicou o decreto assinado por Leopoldo II em 10 de Junho, que criou “un douziéme district, qui portera le non de district du Kuango Oriental. Ce district s’étend entre le Kuango et les districts du Kassai et du Lualaba”(6). No dia 12 de Agosto, o “Indépendance Belge”, jornal ao serviço do Estado Independente do Congo, dizia que “o tratado de 14 de Fevereiro de 1885 designou o curso do Cuango como fronteira respectiva entre Portugal e o Estado Independente do Congo, que Muatiânvua (Mwata Yanvo) formava o duodécimo distrito administrativo do Estado Independente do Congo, compreendendo os distritos administrativos do Cassai e Lualaba” (7) .
Logo que este decreto foi conhecido, o Ministério dos Negócios Estrangeiros Português movimentou os seus diplomatas, e, em 23 do mesmo mês, o conde de Macedo fez entrega na administração do Estado Independente do Congo, de uma nota de protesto “em termos brandos” mas bastantemente firmes, em que sobre a forma de fundada esperança (formulava), aliás claramente, as suas exigências no regresso do statu quo ante e na manutenção indefinida deste” (8) .
“A moderação da fórmula e da linguagem em que (entendeu) dever traduzir o seu protesto e reclamação teve principalmente em vista não prejudicar, criando ou aumentando irritações estranhas ao fundo da questão, alguma solução amigável e pacífica dela...” (9).
O protesto português exasperou Leopoldo II, que concebeu logo a ideia de um ultimatum a Portugal, ao jeito como fizera a Inglaterra. Enviou Liebrechts às docas de Londres para adquirir, por conta do Estado Independente do Congo, um navio de guerra abatido ao efectivo mas suficientemente armado para trazer a Lisboa o ultimato sob a ameaça dos seus morteiros... Liebrechts vagueou pelas docas londrinas sem mostrar abertamente o fim da sua missão. Ao cabo de oito dias encontrou nas docas de Poplar um navio mais ou menos à feição, capaz de dar 14 nós, com armamento e munições, com uma equipagem completa, podendo aguentar-se no mar durante uma quinzena sem ser reabastecido.
Liebrechts, apesar de tudo, julgou-o insuficiente para a aventura, e comunicou para Bruxelas essa sua opinião. Não obstante, recebeu ordens de comprar o navio. Protestou, e foi à capital belga para se justificar. Teve mau acolhimento, mas o bizarro projecto foi abandonado (10).
A 2 de Setembro, pela nota n.º 1117, Van Eetevelde, respondeu à reclamação portuguesa, reiterando a interpretação do Estado Independente do Congo e recordando a Carta da África Meridional, de 1886, da Comissão de Cartografia portuguesa, a carta anexa aos protocolos da Conferência de Berlim, entre outras que atribuíam ao Estado Independente do Congo a fronteira do Cuango, e davam este rio como limite nordeste de Angola (11).
Na mesma nota Van Eetevelde considerou a necessidade de se submeter a pendência relativa aos territórios, mencionados no decreto de 10 de Junho, à arbitragem do Conselho Federal Suíço. Portugal contestou, evocando sobretudo, por um lado, a expedição de Henrique de Carvalho à Lunda e ao Muatiânvua entre 1884 e 1888, e, por outro lado, o próprio texto da Convenção de 14 de Fevereiro de 1885. O então Ministro dos Negócios Estrangeiros, Barbosa du Bocage, dizia a 29 de Novembro ao conde de Macedo: “... Com este alvitre não pôde o Governo português concordar, porque sempre estiveram esses territórios sujeitos ao Império do Muatiânvua, protectorado africano que desde longos anos manteve constantemente com Portugal amigáveis relações, relações estas cujo caracter melhor se definiu, e cuja intensidade subiu ao extremo por efeito da viagem essencialmente política realizada pelo major do Exército Português Henrique Augusto Dias de Carvalho, nos anos de 1884 a 1888” (12). Porque Portugal nunca teve por incluídos no Estado Independente do Congo os territórios agora em litígio, não poderia “considerar extensivo a eles o acordo celebrado em 7 de Fevereiro, para submeter à arbitragem do Conselho Federal Suíço as divergências que se suscitassem por ocasião de se executarem sobre o terreno os trabalhos de delimitação das possessões respectivas de Portugal e do Estado Independente do Congo” (13), pois para tal, “era preciso que ela nascesse e se deduzisse directamente dos termos da Convenção de 14 de Fevereiro de 1885 entre Portugal e o Estado Independente do Congo (14). E, com efeito, a declaração de neutralidade do Estado Independente do Congo, comunicada às potências signatárias do Acto de Berlim em 1 de Agosto de 1885, excluía das suas possessões os territórios da Lunda (15).
O litígio foi-se resolvendo aos poucos. No prosseguimento das muitas diligências efectuadas ao longo dos anos, o Governo português propôs que, antes de tudo, fossem “...examinados de boa fé, e confrontados com ânimo conciliador, os títulos e fundamentos do direito que Portugal possuía com relação às terras do Muatiânvua, conjuntamente, com aqueles que o Estado Independente pudesse produzir para justificar a resolução de estender a sua soberania, ou a sua esfera de influência, a esses territórios, compreendidos entre o curso do Cuango e o limite descrito na declaração de 1 de Agosto de 1885. Para esse efeito poderiam reunir-se em conferência, em Lisboa, num prazo que o Governo português estimaria que fosse breve, representantes devidamente autorizados de Portugal e do Estado Independente, assistidos por delegados técnicos particularmente versados nos assuntos relativos àqueles territórios” (16). O Governo belga através do seu representante em Lisboa, Édouard de Grelle Rogier, comunicou ao Ministro Barbosa du Bocage a sua aceitação à negociação directa. Dela resultou o Acordo entre os Governos de Portugal e do Estado Independente do Congo sobre a Questão da Lunda, assinado em Lisboa em 31 de Dezembro de 1890, por Barbosa du Bocage e Édouard de Grelle Rogier.
Pelo artigo I, ambos os governos diligenciariam “... resolver por meio de uma negociação directa, que (teria) lugar em Lisboa, a divergência suscitada entre os sobreditos governos acerca da interpretação da convenção celebrada em 14 de Fevereiro de 1885 entre Portugal e a Associação Internacional Africana, no que respeita ao exercício da influência e ao direito da soberania nos territórios compreendidos entre o curso do Cuango e o 6º paralelo de latitude sul e a linha divisória das águas que pertencem à bacia do Cassai entre os paralelos 6º e 12º de latitude sul”.
Art. II
“...No caso dos plenipotenciários respectivos não poderem chegar directamente a um acordo, o Governo de sua Majestade Fidelíssima e o Governo do Estado Independente do Congo comprometem-se a recorrer à mediação de Sua Santidade o Sumo Pontífice Leão XIII”.
Artigo III
“... comprometem-se, além disso a submeter a questão à arbitragem duma potência amiga, escolhida por eles de consenso mútuo no caso de não se chegar por via de mediação a estabelecer o acordo sobre o ponto de que se trata”.
No dia 5 de Fevereiro, Van Eetevelde comunicou ao conde de Macedo que, de acordo com o Governo português relativamente ao statu quo ante, o Governo do Estado Independente ia “donner à ses autorités en Afrique d’arrêter toutes ses expéditions qui agissent dans le Lunda” (17).
Neste mesmo dia o administrador-geral dos Negócios Estrangeiros do Estado Independente do Congo informou ao conde de Macedo que tinham sido nomeados, plenipotenciário, Édouard de Grelle Rogier, e delegado técnico, Adolphe de Cuvelier à conferência que se realizaria em Lisboa para resolver a Questão da Lunda (18). Da parte de Portugal, foi nomeado, plenipotenciário, o major de engenharia Carlos Roma du Bocage, filho do então Ministro dos Negócios Estrangeiros, e delegado técnico, o major Henrique Augusto Dias de Carvalho (19).
No decurso dos debates da conferência, foi possível aos portugueses defenderem uma interpretação, que, com efeito, não estava na mente dos que intervieram na conferência de Berlim e consequentemente na convenção de 1885. De facto, afigura-se lícito afirmar que a convicção dos governantes em Portugal, ao menos na conferência de Berlim, era de que as fronteiras angolanas, no nordeste, corriam pelo Cuango.
Na diversa correspondência trocada, nos vários acordos (arrangements) propostos, os delegados manifestaram sempre a ingenuidade, ou a convicção, ou a certeza de que Angola acabava no Cuango. Em telegrama de 8 de Fevereiro de 1885, o Marquês de Penafiel comunicava a Barbosa du Bocage que ia apresentar o projecto da sua delegação a propor “... a linha média do curso do Congo até à foz do rio M’pozo, indo este até ao paralelo do Nóqui, seguindo depois este paralelo até ao curso do Cuango, seguindo depois este a montante como limites norte e nordeste” (20).
Sem quererem, os diplomatas portugueses tornaram possível uma interpretação que, com sorte vingou. Deste modo foi resolvida a Questão da Lunda, assinando-se em Lisboa o tratado de 25 de Maio de 1891 que pôs fim ao diferendo .
No dia 24 de Março de 1894, Édouard de Grelle Rogier, e Miguel Martins d’Antas assinaram a declaração que consignou “la ratification pour les gouvernements respectifs de l’acte (acta de 26 de Junho de 1893) qui précéde, la dite ratification devant sortir ses pleins et entrei effects à la date de trente et un mars mil huit cent quatre-vingt-catorze” (22).
Ratificados os trabalhos de demarcação, feitas as comunicações às respectivas autoridades de ambas as partes ( 23), pôs-se fim à Questão da Lunda que durou quase dez anos.
O Estado Independente do Congo abdicou das suas reivindicações sobre os territórios compreendidos entre o Cuango e o Cassai, vendo assim Portugal reconhecida a sua soberania sobre regiões em que há muito vinha penetrando e exercendo a sua influência.
(*) Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa em Ciências Jurídico Políticas na vertente de Direito de Fronteiras terrestres e Marítimas e especialista em Delimitação de Fronteiras. Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto e da Universidade Católica de Angola, Decano da Faculdade de Direito da Universidade Metodista de Angola
(1) Negócios Externos, 1891 (limites do Congo) p. 5-6.
(2) Idem p. 6-7.
(3) Idem. P. 11-12.
(4) Negócios Externos, 1891 (limites do Congo), p.5-1o5; José de Almada, “Tratados...” IV, p. 157-163.
(5) Livro Branco sobre a Questão da Lunda, doc. n.º 2, p. 7
(6) Idem, doc. nº7 e 8, p. 9.
(7) Idem, doc. n.º 3, p.7
(8) Idem, doc. n.º 11, p.10.
(9) Idem, p. 10-11.
(10) Eduardo dos Santos, “A Questão da Lunda”, p.154-156.
(11) Livro Branco sobre a Questão da Lunda, doc. n.º 12-A, p.14
(12) Idem, doc. n.º 13, p.16
(13 Idem. Idem, p.17
(14 Idem. Idem.
(15) Idem. Idem.
(16) Idem; doc. n.º 13, p.18
(17) Idem; doc. n.º 19-A-II, p.29
(18) Idem. Idem.
(19) Idem; doc. n.º 20 e 21.
(20) Eduardo dos Santos, “A Questão da Lunda”, p. 161-163.
(21) José de Almada, ob. cit. p.155-156; Comandante Moura Braz, “Fronteiras...”p. 85-86.
(22) Idem; declaration.
(23) Idem; telegrama de 25 de Março de 1894 da Legação de Portugal em Bruxelas para o Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros.
Fonte: http://jornaldeangola.sapo.ao/20/0/os_caminhos_historicos_das_fronteiras_de_angola
01 de Dezembro, 2009
Os caminhos históricos das fronteiras de Angola I
http://cangue.blogspot.com/2009/12/fronteiras-de-angola-e-evolucao.html
Os caminhos históricos das fronteiras de Angola II
http://cangue.blogspot.com/2009/12/os-caminhos-historicos-das-fronteiras.html
Os caminhos históricos das fronteiras de Angola III
http://cangue.blogspot.com/2009/12/os-caminhos-historicos-das-fronteiras_02.html
Os caminhos históricos das fronteiras de Angola V
http://cangue.blogspot.com/2009/12/os-caminhos-historicos-das-fronteiras_04.html
0 comentários:
Postar um comentário