domingo, 15 de novembro de 2009

Trinta e quatro anos depois, já não basta a possibilidade de sobrevivência - Ismael Mateus



Por Ismael Mateus

Aos trinta e quatro anos de independência, o país deveria oferecer já uma vida diferente aos seus filhos.

Mesmo que tenhamos de lembrar a guerra, já se passaram quase oito anos de vida em paz. Os mais graves males de que padece esta Angola de 34 anos estão obviamente ligados à guerra mas não só. A guerra contribuiu imenso para o grande palco de injustiças sociais em que o país se transformou mas, ainda assim, começa a ser hora de encararmos com frontalidade e coragem os outros factores que também foram responsáveis pelo actual estado de coisas. Somado o argumento da herança colonial e o dos efeitos da guerra, temos de assumir que ainda nos resta parte da responsabilidade para o estilo de governação que, ao longo dos tempos, criou zonas cinzentas de promiscuidade e práticas discricionárias de gestão.

Esquecida a guerra e a herança colonial, um olhar honesto para o país não pode deixar de ver a corrupção, profusamente instalada como uma incontornável marca dos nossos tempos. Vemos igualmente a fraca administração pública e gestão dos bens públicos submissos aos caprichos individuais ligados aos colarinhos brancos. Não há nada na nossa administração que não seja alterável com uma boa cunha, com um bom- nome ou com uma boa orientação superior. Mesmo as leis são contornáveis e enfraquecidas dependendo de quem as aplique ou as use, revelando toda a fraqueza deste nosso Estado. O mesmo se aplica a valores. Os valores como a honestidade, a defesa do bem público ou o tratamento igual no serviço público são habitualmente objecto de punição, despromoção ou alvo de tratamento jocoso. O mérito profissional é algo que nada vale. Muitos dos quadros que, com mérito, ocupam lugares e funções de responsabilidade tiveram de passar pela vergonha de ceder ao status quo ou, tam-bém exemplos desses, tornaram a sua capacidade técnica tão ób-via que só muita cara de pau os deixaria de fora.

Esta nossa sociedade angolana de 34 anos está profundamente marcada põe estes hábitos e vícios de gestão. A sociedade está toda corroída desses males e eles são, ao mesmo tempo, os grandes entraves do sucesso individual. Qualquer indivíduo da minha geração, a caminho dos cinquenta anos, que é, assumidamente, uma geração da independência, não tem hipótese de atingir o sucesso individual se não se curvar ou à corrupção, às regras estabelecidas ou ao carreirismo político vigente. A geração que se segue, abaixo dos quarenta anos, tem menos oportunidades ainda e o caminho da por-ta da cozinha é uma boa saída para o futuro. Por isso, a minha geração ainda sofre com cada momento que tem de dobrar a coluna, mas os mais novos não se mostram nada constrangidos. A quebra de valores morais está a subverter a imagem do angolano. De trabalhadores, corajosos e persistentes, hoje raramente vemos esses atributos serem associados aos angolanos. Podemos até argumentar com os efeitos da guerra ou do 27 de Maio, mas hoje raramente somos vistos como corajosos. A definição como ‹‹povo heróico e generoso››, que era uma virtude afirmar, hoje é um motivo de chacota quase para significar falta de coragem e burrice. É um insulto à nossa história de luta, mas ninguém se importa com isso. Aos poucos a minha geração sucumbiu aos apelos financeiros e desistiu de lutar contra o que lhe é superior. Alguns de nós, lentos a compreender os fenómenos, atrasaram-se e ainda têm a utopia de lutar contra a corrente. Mera utopia. Vão aca-bar todos, como nós próprios, com uma legenda na testa: ‹‹Estou à venda. Preciso de alimentar a minha família››.

A velha geração que ainda governa o país tem sido incapaz de reconhecer a sua falência completa na moralização da sociedade. Sem essa moralização as hipóteses de igualdade são mínimas já que o mérito individual, a competências profissionais e até a visão inovadora fica subordinada ao subjectivismo da aprovação política. O reconhecimento do fracasso neste ponto não iria retirar-lhes o mérito histórico de ter combatido pela independência e de ter dado a paz aos angolanos. Aos 34 anos de independência deveria ser um dever patriótico reconhecer-se que a corrupção fugiu ao controlo e mina cada vez mais o Estado e a vida das pessoas, tal como se deveria reconhecer que os modelos de ascensão social e profissional estão invertidos. Assentam na cunha, no expediente político e em grupos de interesses. A intriga, as lutas intestinas pelo poder e os jogos de equilíbrios ou de alianças politicas fazem hoje parte importante das estratégias de alcance ou de manutenção de poder. Não há como fugir a esses fenómenos que se alastraram do topo da governação para as estruturas locais e empresas públicas.

Genuinamente, achamos que os mais velhos pretendem o melhor para o país. São e estão bem intencionados e, certamente, fazem o seu melhor. Só não conseguem moralizar. Quanto mais tentam, pior fica e quantos anos mais se mantenham no poder mais a situação se descontrola. É notória uma acentuada incapacidade real de corrigir os vícios criados pela governação em tempo de guerra e causados pelas opções governativas que levaram aos fenómenos acima referidos. O sucesso das obras e de algumas políticas económicas acaba perdendo o seu real impacto na sociedade por obra e graças dos esquemas, da corrupção e apropriação desmesurada de determinados grupos de interesses. A construção de casas pelo governo, por exemplo, é original-mente positiva mas perde o seu impacto se, depois, essas casas vão para os filhos, namoradas e pessoas indicadas pelos mesmos grupos de sempre. Quem não esteja nessas ‹‹trupes›› fica de fora uma e mais uma e repetidas vezes até ‹‹baixar a crista›› ou aderir. Isso é aplicável a um conjunto de exemplos. Mesmo que o Estado faça um grande esforço para dar mais dignidade aos angolanos há pelo meio grupos de interesse que se vão aproveitar disso para lucrar, perante a incapacidade do Estado de se fazer autoridade. Esses grupos emanam do interior do Estado. Têm relações familiares directas ou por afinidade com os principais responsáveis do Estado. Tudo isso fragiliza o Estado ao ponto de existir hoje a forte suspeita de que algumas leis são inspiradas não no interesse supremo da Nação mas no interesse económico de determinados grupos. Esses grupos estão claramente fora do con-trolo. Estenderam os seus próprios tentáculos e criam agora as suas próprias redes de influência. Podem manipular o mercado, podem fazer lobbies para alterar ou desrespeitar a lei e podem subverter a ideia originária do um negócio do Estado. Cada um de nós sabe que há exemplos desses por aí.

Aparentemente, a nossa governação já não está capaz de corrigir a situação, por muito intenções que se anunciem. Ao invés de acabar, o que vemos acontecer é a reprodução em escala menor dos erros que vêm de cima. Se o ministro trabalha com a sua empresa ou com a da filha, o chefe de departamento faz o mesmo e o homem dos re-cursos humanos também. ‹‹Se ele faz, porque não farei eu também?››

Nestes trinta e quatro anos o tempo é de mudança radical. Já passamos a idade de Cristo e continuamos sem esperança no futuro, mesmo perante políticas governativas aceitáveis ou leis democráticas. Têm de nos dar mais do que a simples a possibilidade de sobrevivência. ■

SA, EDIÇÃO 342 • ANO VII, 14 de Novembro de 2009

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