Constituições maleáveis
Por Sousa Jamba
No domingo passado, eu estava com as minhas filhas no sector maioritariamente negro da cidade de Jacksonville, no estado da Florida, onde vivemos. Estávamos a caminho de um restaurante quando vimos dois jovens, engravatados, a distribuírem panfletos religiosos. Uma das minhas filhas notou que eles falavam português. Ficamos todos animados ao saber que eram angolanos e fomos almoçar juntos. Esses jovens angolanos, que já vivem nos Estados Unidos há muitos anos, estavam triste porque Angola acabava de perder o jogo com o Ghana. No decurso da refeição os dois jovens manifestaram a sua inquietação sobre a nova Constituição angolana. De acordo com os jornais americanos que os dois jovens angolanos lêem, tecnicamente o presidente José Eduardo dos Santos poderá permanecer no poder até ao ano 2022. Segundo os mesmos relatos, nos termos da nova constituição o presidente José Eduardo dos Santos vê todos os seus poderes reforçados, o que inclui a nomeação, por ele, dos titulares das mais importantes instituições do Estado angolano. Em resposta, disse-lhes que o que acaba de acontecer em Angola é típico de países africanos com maiores absolutas nos parlamentos.
Expliquei àqueles jovens que a maioria dos africanos não leva a sério as constituições dos seus países porque elas são quase sempre meros instrumentos através dos quais as elites fortalecem o poder dos ais fortes, nomeadamente os chefes de Estado.
Pelo mundo fora fala-se muito do conceito de check and balances avaliação e equilíbrios) para garantir a robustez de uma democracia. Num continente como o nosso, em que as tradições do poder recaem sempre num certo centralismo ou totalitarismo, é mesmo necessário estabelecer equilíbrios para evitar os excessos da concentração do poder. O poder, diz-se, corrompe e em África corrompe muito mais. O ideal é ter um parlamento equilibrado – em que os que possuem a maioria não possam mudar as leis só para satisfazer uma única entidade. Para muitos chefes do Estado africanos, os parlamentos há muito que se tornaram meros instrumentos para esticarem até ao limite das suas forças físicas e mentais a sua permanência no poder.
Depois da queda do murro de Berlim, e dos ventos da democracia vindos da Europa do Leste, muitos países africanos adoptaram constituições com limites para os mandatos presidenciais. Grande parte dos países africanos adoptaram esse modelo. Mas isso durou muito pouco. Países como a Algéria, Burkina Faso, Tchad, Gabão, Níger, Togo, Tunísia, Camarões, Uganda rapidamente desistiram do modelo e alteraram as respectivas constituições para permitir que o líderes no poder pudessem ser reeleitos enquanto estivessem vivos.
Em 1986, muitos de nós ficamos bastante entusiasmados ao ouvir o então presidente da Uganda, Yoweri Museveni, a afirmar que em África os presidentes só deveriam permanecer no poder por um máximo de dois mandatos. De outra forma o poder tornar-se-ia um vício. Hoje o mesmíssimo Museveni defende a tese de que não há no Uganda uma única pessoa que tenha capacidade de lhe substituir. A sua esposa, Janet Museveni, que é ministra, menosprezou os argumentos daqueles que defendem limites nos mandatos presidenciais, dizendo que o seu marido foi escolhido por Deus e não há mais o que discutir. Para alterar a constituição de modo a esticar os seus mandatos, Museveni contou com o apoio da maioria parlamentar do seu partido. Antes de se pronunciarem sobre a alteração da constituição, os deputados ugandeses bem como os funcionários públicos receberam generosos aumentos salariais
Em muitos casos no continente africano, os chefes de Estado tratam os deputados eleitos pelos cidadãos na mesma bitola com os membros do governo que eles nomeiam. Os chefes de Estado não respeitam os deputados.
A esterilização das constituições africanas esta muito ligada ao enfraquecimento dos parlamentos como órgãos de legislação. No Togo, por exemplo, durante o regime do presidente Eyadema, a constituição foi alterada rapidamente para acomodar um desígnio pessoal do chefe de Estado. Já doente, ele mandou reduzir de 40 para 35 anos a idade para que um cidadão togoles pudesse concorrer à presidência. Todos perceberam que essa alteração visava permitir que um dos filhos do velho ditador suceder ao pai. Quando o velhote foi levado desta para melhor claro que ninguém respeitou a constituição que dizia que no caso de falecimento do chefe de Estado o presidente da assembleia nacional assumiria os destinos do país até à realização de novas eleições. Só depois de uma enorme vaga manifestação em várias partes do mundo é que as autoridades togolesas fizeram alguns gestos cosméticos para darem a entender que a constituição foi respeitada.
Um caso flagrante, em que a constituição está a ser flagrantemente desrespeitada é o da Nigéria.
Segundo a lei magna, na ausência do chefe do Estado o vice- presidente assume o poder. O presidente Musa Yardua, que tem complicados problemas cardíacos, já esta na Arábia Saudita há quase três meses. Porém, o seu vice- presidente, Goodluck Jonathan, não assumiu o poder. Diz-se que a esposa do presidente Musa Yardua e alguns membros da sua família é que estão a controlar a máquina governamental. Figuras como o escritor Wole Soyinka estão envolvidos numa campanha para forçar que toda a gente siga o que a constituição diz. A concentração do poder numa só figura, a longo prazo, enfraquece as instituições nacionais.
Durante o seu reinado, o antigo presidente da Zâmbia, Frederick Chiluba, pensava que a constituição era algo com que poderia brincar porque os deputados do seu partido maioritário votariam sempre no que ele quisesse. Ele tinha recebido um relatório dos seus serviços de segurança afirmando que a então sua esposa, Vera Chiluba, estava a ter um caso amoroso com Archie Mctribuoy, um mecânico mulato, especialista em viaturas de marca Land Cruiser. De repente, o pobre mecânico viu-se acusado do roubo de uma viatura e foi empurrado para uma prisão de segurança máxima. Na altura, a constituição zambiana estabelecia que os cidadãos acusados de roubo de viaturas ou de outro crimes menores podiam pagar caução e sair em liberdade.
Enfurecido por a mulher lhe pregar palitos, Chiluba mandou alterar a constituição para negar caução a quem fosse acusado do roubo de uma viatura. Ao fim de vários anos, o mecânico Mctribuoy acabou mesmo por falecer na cadeia. Hoje vários intelectuais zambianos citam este caso como um incidente vergonhoso em que um indivíduo utilizou o parlamento e a constituição para fazer um ajuste de contas na sua vida doméstica.
Na mesma Zâmbia tramita uma proposta, feita obviamente pelo círculo do presidente Rupiah Banda, que diz que a constituição deveria ser alterada para permitir que só pessoas licenciadas possam candidatar-se à presidência da República. Rupiah Banda nunca desperdiçou nenhuma oportunidade de recordar aos seus concidadãos que é licenciado pela universidade de Cambridge.
Está evidente que a proposta de alteração da constituição visa barrar o caminho ao líder da oposição, Michael Sata, que não é licenciado, embora já tenha sido foi ministro várias vezes. Os lambe-botas do presidente Banda, muitos deles sem licenciaturas, defendem com unhas e dentes o que vai pela cabeça do chefe, argumentando que o país só deve ser liderado por alguém que já passou por uma boa universidade.
O que é bastante triste é que os chefes das claque dos processos de desvalorização dos parlamentos e constituições no continente africano são, em muitos casos, bons e respeitados intelectuais.
Infelizmente, muitos deles não aprendem com a história. Nos anos 80, Edson Zvogbo foi ministro dos Assuntos Parlamentares e Constitucionais do Zimbabwe. Falecido em 2004, Zvogbo, foi, provavelmente, um dos melhores constitucionalistas do continente africano. Formado pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, ele foi professor de direito constitucional em várias universidades americanas. Esse intelectual escrevia muito – sobretudo sobre as ilegalidades dos sistemas coloniais. No Zimbabwe, como ministro dos Assuntos Parlamentares e Constitucionais, arquitectou algumas das leis que concentraram muito poder nas mãos de Mugabe. Era Zvogbo que estava por detrás de leis mais draconianas. Num fim da vida, esse grande intelectual arrependeu-se e virou-se contra Mugabe. Amargurado, ele dizia que o Zimbabwe tinha as leis mais severas do mundo.
Os jovens angolanos não deveriam sentir-se tão desanimados: a luta pela criação de uma sociedade democrática com instituições viáveis já nunca vai parar. ■
SA (30 Janeiro 2010)
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