sábado, 3 de outubro de 2009

A repentina unanimidade - Ismael Mateus


Por Ismael Mateus

O MPLA decidiu colocar em marcha toda a sua máquina propagandística para dar explicações aos militantes sobre a sua «teoria da evolução». As palavras dos dirigentes do MPLA são esclarecedoras: dizem «dar explicações» e não negociar ou submeter à apreciação. Dizem «aos militantes» e não à sociedade. A imagem mais aproximada desta atitude do MPLA é a caricatura de um «Ca-enchente», exibindo os músculos e segurando uma tabuleta em cada mão.

De um lado, escreve-se 82% e de outro disciplina partidária. Como noutras ocasiões, o MPLA coloca-se numa posição de donzela ultrajada e incompreendida por um inimigo imaginário.

Todas as vezes que o maioritário precisa de reforçar a sua unidade interna, socorre-se de inimigos imaginários, solicitando a unidade dos militantes contra esses imaginários ataques e inimigos. Neste caso, os supostos inimigos são todos os que não defendem as atípicas. Ter e manter uma posição anterior, adoptada e aceite democraticamente por todos é, agora, estar contra a estabilidade, contra a transição responsável e é ter – foi acrescentado esta semana – planos inconfessos. E assim, porque o voto nas estruturas do MPLA ainda é de braço no ar ninguém se atreve a estar do lado dos «inimigos», pelo menos publicamente. Os inimigos internos e externos são assim o factor de unidade e do unanimismo «atípico», contra os quais os militantes se devem opor e não se devem deixar enganar.

Não sejamos retrógrados. Toda a gente pode evoluir. Até é positivo que haja evolução. Se o MPLA mudou ainda bem que o fez por-que, regra geral, é exactamente acusado de não mudar nada. Ia, por isso, ser natural uma explicação sobre o alcance da mudança. Quais as implicações? Quais as motivações e razões da mudan-ça? Porque tem de ser feita agora? Quem beneficia e o que se beneficia com ela? Qual é objectivo da mudança?

Até agora, ninguém foi capaz de, publicamente, esclarecer estas e outras questões e não acredita-mos que haja muita gente a sentir que tenha o dever de o fazer. O único argumento quem se tem apresentado é o da estabilidade. Como demonstrou o exemplo ANC-Mbeki, o argumento da estabilidade é falso. Pelo contrário, o atípico pode potenciar muita instabilidade política. Os choques de personalidades registados no nosso semi-presidencialismo podem igualmente ocorrer nas atípicas. Basta que o tal cabeça de lista, que é candidato presidencial, não seja presidente do partido que o propõe. Uma vez eleito, torna-se um presidente manietado e manipulável já que fica à mercê do partido proponente. No sentido inverso, o MPLA já deu ao seu actual presidente todos os poderes que tinha e mais alguns. JES construiu isso durante 30 anos. Quem quer que seja o seu sucessor, amanhã ou daqui a vinte anos, não vai ter um partido tão «atípico».

Todos os sistemas e modelos de eleição oferecem bons e maus argumentos. O essencial, para o nosso caso, é o modo como uma ideia de um grupo minoritário produziu uma viragem tão grande, tão rápida, tão «unânime» em tanta gente. Infelizmente, os estrategas do MPLA não querem saber de compromissos feitos para se chegar aos 82%, nem de um aberto e franco diálogo (e não explica-ções) com a sociedade. Ao abrigo dos 82%, o MPLA vai mesmo levar adiante, doa a quem doer, a sua ideia das atípicas. Se as explicações forem dadas aos militantes, se os militantes se unirem contra os inimigos das atípicas, se as estruturas de base apoiarem tudo o resto não importa. Este é um país de militantes e não de cidadãos. Os seus militantes (4 milhões 162 mil em Julho de 2008) representam mais de 75% dos eleitores que em de Setembro de 2008 votaram no MPLA (5.266.216 votos).

O debate com a sociedade, se acontecer, será acessório e sem o mesmo destaque.

No fundo, ao termos dado uma maioria tão expressiva ao MPLA muitos de nós temiam que ocor-ressem processos desses. Agora, com muita sinceridade, não há nada a fazer. Seja quem for que tenha «bolado» esta via, fê-lo com mestria. Levou-nos na curva. Temos só de assumir uma resignação geral. Fingir que está tudo bem. Falar do girabola. Discutir o aquecimento global e esquecer estas preocupações atípicas.

Muitos de nós talvez tenham ainda algum escrúpulo e relutem muito em aparecer em público a defender as atípicas depois de sempre terem defendido outras posições. Mas temos de estar preparados para a grande evolução que já se registou no país. Já nada nos pode surpreender quanto ao que somos capazes de fazer para a defesa de certas posições políticas. Deve ser a isso que chamamos «povo heróico e generoso». Hoje já é possível até afirmarmos que há um certo consenso, a caminho do unanimismo, à volta das atípicas, à excepção, claro, dos inimigos do povo. Agora já não existe um único jurista, analista político ou dirigente da linha política do MPLA que alguma vez nesta encarnação tenha pensado, defendido ou escrito publicamente sobre outro modelo de eleição que não sejam as atípicas.

Mesmo que fiquemos com uma leve desconfiança de que essa coisa das atípicas só dá vantagens a um pequeno grupo, muito pequeno mesmo, que vai continuar a mandar em tudo e em todos, e a usar o Estado para os negócios privados, o melhor é não falar política. Uma das lições deste processo é que não vale a pena lutar contra a vontade geral. Mais de metade dos eleitores parece que deram já nas estruturas do MPLA aval para as atípicas. Elas vão ser feitas de qualquer jeito. É de facto uma perda de tempo discutir o que está decidido. A palavra de ordem é resignação. Resignação, resignação, resignação, como em muitos ca-sos de negócios, de corrupção, de autoritarismo e de injustiças com que nos confrontamos há muito tempo e silenciamos.

Estamos infelizmente a construir um estado em que uns se colocam acima da lei e até dos procedimentos e outros nada podem fazer senão resignar. Baixar a cabeça e esperar pela próxima humilhação. Há certamente quem goste disso e se ponha na primeira fila a aplaudir e justificar. Porém, estamos convencidos de que cada um de nós, cidadãos, pais, eleitores, homens com dignidade e orgulho, cada um de nós quando põe a mão na consciência concorda que isso que está a ser feito não é o caminho da concórdia. Não é o caminho da estabilidade. Pelo contrário, abre caminho a que as pessoas se sentem à espera que o tempo passe – porque o tempo passa, não pára – para devolverem tudo, exactamente tudo, na mesma moeda ou, no mínimo, proceder exactamente do mesmo modo, nos benefícios, nos negócios e até na capacidade de moldar os interesses nacionais aos interesses de grupo. Definitivamente, não é esse o caminho da estabilidade e do convívio harmonioso. Este é o perigo a que estamos expostos. ■

Fonte: SA, Sábado, 03 de Outubro de 2009.

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