segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Memórias de um repórter de guerra




Memórias de um repórter de guerra
por Jaime Azulay

Publicado em edições do Semanário angolense, 303/304/305/306/307/308/309 - Fev/Março 2009

Parte I (edição 303)

Na primeira semana de Janeiro de 1999 encontrava-me na região centro de Angola como repórter de guerra. O comando das FAA instalado no Huambo autorizara a minha partida para a frente de Vila-Nova, a cerca de 60 quilómetros da capital provincial, no eixo rodoviário que liga ao Bié. Desde o início de Dezembro de 1998 a região conhecia uma escalada de combates violentos entre as forças governamentais e os rebeldes da UNITA. Dois aviões Hércules C-130 ao serviço da ONU tinham sido abatidos no espaço de uma semana. Em consequência do cerco imposto pela UNITA ambas as capitais de província, as cidades do Huambo e do Kuito, estavam praticamente isoladas do resto do país.

De uma maneira geral o mundo desconhecia o que se passava aqui. Havia pouca informação, o que deixava espaço para a proliferação de boatos e a difusão de notícias desencontradas. Eu desembarcara expectante de um dos poucos cargueiros «Iliutchine» que arriscava descer da segurança das alturas para a pista do aeroporto Albano Machado. Os aparelhos baixavam numa espiral incrivelmente apertada para não fi carem ao alcance dasarmas anti-aéreas das FALA , o exército da UNITA. Era notória a perícia daqueles pilotos. À essa manobra chamavam-lhe com todo o merecimento a «espiral da morte». Sem desligarem sequer os reatores, os aviões descarregavam o armamento e as munições para as forças do governo e num lapso de tempo regressavam às alturas.

Desde logo tomei contacto com a confusão que reinava no local. Apesar das inúmeras barreiras de controlo formadas nos acessos para o aeroporto, centenas de civis deambulavam pela placa, incluindo militares desertores. Reinava um ambiente de pânico devido aos rumores de que forças da UNITA fortemente armadas se aproximavam da cidade. Muitas pessoas tentavam subir nos aviões que, após a descarga, tinham como destino Luanda. Crianças assustadas eram puxadas pela mão por mais velhos transportando bagagens desarrumadas em sacos e sacolas. Era um autêntico pandemónio que a Polícia Militar não conseguia disciplinar. Umas pessoas tentavam embarcar à força enquanto outras procuravam fazê-lo à socapa, recorrendo ao velho artifício do suborno. Acenavam notas de 100 dólares americanos aos pilotos russos que cedo descobriram as regras do esquema e não se faziam rogados a embolsarem o dinheiro «imperialista». Era necessário dinheiro americano para se entrar no «samalhote» russo e fugir do inferno do Huambo.

Os pilotos sentenciavam em voz alta: «Dá dolare, dá samalhote, niet dolare, niet samalhote», qualquer coisa como, «pagas dólares, embarcas no avião, se não pagas, não vais». Um oficial subalterno das FAA era a imagem daquilo que se chamava «paniqueiro », ou seja aquele que está tomado pelo pânico. Estava fora de si e desdobrava uma guia de marcha na vã tentativa de chamar a atenção dos tripulantes. Por mais que gritasse ninguém lhe dava ouvidos. Ia, isso sim, levando cotoveladas na rampa de embarque, mas sempre a agitar nas mãos o seu papel amarfanhado. Pobre militar!

Desenvencilhei-me do mar de gente que tentava envolver o avião. As pessoas pareciam incrédulas ao verem um civil desembarcar no Huambo. Olhavam-me como olhariam um extraterrestre de cor esverdeada. Fui recebido pelo jornalista Joaquim Neves, correspondente da Agência de Notícias ANGOP. Ele era uma das poucas pessoas que aparentavam calma naquele clima turbulento. A cidade tinha sido bombardeada na véspera com foguetes «BM-21», lançados a partir de uma rampa móvel. A população acreditava que os bombardeamentos prosseguiriam nos dias posteriores. As pessoas queriam sair antes que acontecesse o pior. O Neves estava bem informado sobre o evoluir da situação. Pontualizou-me como as coisas estavam no terreno. As forças do governo chefi adas pelo recém-chegado general Armando da Cruz Neto, que acampou na zona do cruzeiro, encontravamse naquele momento a alargar o cordão de segurança da capital da província a fim de garantirem a aterrissagem dos aviões de reabastecimento. O resto veria depois com os meus próprios olhos, aconselhou-me o meu anfitrião.

Os habitantes da cidade do Huambo viviam numa indisfarçável tortura psicológica. Pairava no ar o drama dos cargueiros «Hércules» abatidos e a ameaça dos bombardeamentos indiscriminados. À medida que ia conversando com as pessoas verificava de imediato que pouca gente ganhara ânimo no decurso dos últimos dias. Informaram-me, entretanto, que o lança-foguetes BM-21 que tirara contra a cidade no dia anterior tinha sido repelido. O veículo conseguira de facto infi ltrar- se no perímetro de defesa, mas pusera-se em fuga após ser detectado e perseguido.

Partimos às 2h30 da madrugada do dia 8 de Janeiro de 1999 da cidade do Huambo para Tchicala- Tcholoanga. À essa hora outras cidades do mundo dormiriam um sono tranquilo, após a labuta diária. Infelizmente aqui não se passava assim. No dobrar do século XX, com mais de duas décadas e meia de tenebrosa existência, a guerra civil angolana continuava a reclamar vitória. Nessa madrugada chuvosa, no meio de milhares de soldados de um Regimento FAA chefi adopelo Coronel Ngongo Yene, eu e o Joaquim Neves, éramos os únicos repórteres num teatro que se estendia até ao Bailundo e Andulo, onde as forças do governo e da UNITA travavam combates encarniçados desde o início de Dezembro de 1998.

Envolvidos pelo manto escuro da noite e sob um alvoroço incrível começamos a atravessar a cidade entorpecida pelo medo. Estávamos integrados num regimento pronto a entrar em combate. Os tanques e os BMP-2 já se encontravam alinhados para lá do cruzeiro com muitas outras viaturas e soldados. É um princípio incontornável na guerra. As colunas partem sempre pela madrugada, como se fosse esse o momento supremo para um ritual satânico.

RUMO À TCHICALATCHOLOANGA ONDE MORA A GUERRA

Os operacionais das FAA tinham baixado a ordem para a unidade iniciar o movimento em direcção à região de Tchicala-Tcholoanga, chamada de Vila-Nova pelos portugueses, situada a 65 quilómetros do Huambo. O regimento deveria juntar-se a outros milhares de soldados governamentais chefiados pelo general José de Sousa e pelo brigadeiro Recordação que se batiam contra as forças da UNITA nos arredores da Vila do Bailundo, onde o movimento rebelde tinha uma das suas principais bases. Os combates não davam indícios de abrandamento. Combatia-se sem quartel, numa faixa desde os arredores da cidade do Huambo até às cercanias do Bailundo, nas zonas do Chiumbo, Alto-Chiumbo e Nova Aurora. Registavam-se avanços e recuos de ambas as partes. As FAA procuravam reforçar os seus efectivos em Vila Nova a fim de retomarem a pressão contra os bastiões no Bailundo e Andulo, neste último onde se supunha estar o líder rebelde.

Aos 65 anos de idade, Jonas Malheiro Savimbi tinha sob seu comando um exército fortemente armado, com tanques e artilharia reactiva, com capacidade para opôr-se ao exército governamental angolano, na altura chefiado pelo general João Baptista de Matos. A UNITA tinha no total mais de 20 mil homens na região. Eram 3 Brigadas motorizadas, cada com um efectivo de 5.500 homens treinados clandestinamente em campos escondidos nas confluências entre os rios Cupachi e Cunhinga e nas áreas de Chiteva, no municipio do Mungo. Essas unidades motorizadas tinham o apoio de comandos e de forças irregulares de guerrilha e uma milícia popular, a Organização Sentinelas do Povo ou Guarda Republicana. Os planos da UNITA eram ambiciosos. Deveriam desencadear-se como um relâmpago até conseguir depor o governo do Presidente José Eduardo dos Santos. O nosso regimento era um dos reforços mobilizados para ir em socorro das unidades que estavam em Vila Nova e na cidade do Kuito. Esses efectivos ressentiam-se do desgaste resultante dos renhidos combates em que participaram. Após atingir Vila Nova e deixar ali parte dos reforços e logística, o regimento tinha a missão de prosseguir para a província do Bié, atravès de Cachiungo e Chinguar até chegar aos locais onde estavam as forças do general Simione Mucune.

A marcha de um regimento motorizado não é propriamente um espectáculo silencioso a ser aconselhado para terapias de hipertensão. Munidos com aquela quinquilharia era impossível movermo-nos no bico dos pés como as simpáticas bailarinas de ballet. «Aqui é guerra camaradas. A guerra não come pão, mas sabe beber o sangue dos soldados. Que se lixe tudo, estamos a ir não nos disseram para onde nem sabemos quem são os que vão voltar». Conversas disparadas para o ar pelos soldados inquietos. Cai sempre uma chuva miúda nas trevas dessa hora. Tentamos manter a serenidade mas a adrenalina está nos píncaros.

Antes do kibidy o pensamento bate asas e num lampejo pousa na família distante. Depois vem o frio azedo a congelar o estômago. Alguns chamam a isso medo.

REPÓRTER SORTUDO OU O DERRADEIRO «CLICK» DA VIDA?

O certo é que estamos no Huambo, em pleno coração de Angola. O regimento tinha acabado de receber a ordem de partida para a frente. Eu e o Kito Neves rapidamente nos misturamos aos soldados cujo destino era a zona de combate. O que se seguiria era uma incógnita para nós. Estávamos ali, por enquanto em carne e osso, diluídos na disforme massa bélica. Éramos dois repórteres sortudos ou homens marcados para o derradeiro «click» da vida? Eu tocava as câmaras a tiracolo mas os dedos frios não as sentiam. Dei comigo a tartamudear para os meus botões: calma homem de Deus. És um jornalista e vais reportar a guerra na sua própria morada. Com um pouco de sorte poderás até filmar o diabo a assar sardinhas nas brasas do inferno. Tens os teus mestres de eleição. Jean Lartéguy acena-te das muralhas de Israel, nada de mau se passará. Com uma palmada nas costas profetizará que te encontras apenas numa fase de deslumbramento perante a acção pura, por isso deves seguir em frente. Mais tarde viverás uma evolução intelectual e te aproximarás da visão racional e mais imparcial do sentido da própria acção. Do caos de Saigão antes da entrada do vietcong, enquanto beberica dois dedos de wiskhy, Câmara Leme ensinate que para reportar a guerra é necessário estar entre os soldados que a estão fazendo. No fim, quando se fecharem as cortinas do palco do confl ito, não terás de que te queixar por teres estado aqui. Haverá muitas histórias para contar. Por enquanto cuida apenas de sobreviver.

Por certo na película em que vamos participar até Vila-Nova não estão previstas explosões simuladas. No roteiro não se esperam cenas com galãs de rosto enegrecido por maquilhagem que depois se lava sensualmente nos vestiários. O nosso fi lme é a sério. A maldita guerra já escolheu o seu personagem principal. É um demónio impiedoso que separa os outros actores de carne e osso em pessoas vivas e pessoas mortas. Não germina outra espécie de homem na lavra desta guerra.

Iniciamos a marcha barulhenta para Vila Nova. Tanquistas de semblante fechado fazem rugir os motores dos enormes mastodontes pintados de um verde sinistro que se dilui na cor escura da noite. Feixes de luz projectados pelos faróis destapam os vultos sombrios dos artilheiros morbidamente instalados nos camarotes, ansiosos por ouvirem a estereofonia dos seus canhões. É um regimento autêntico de uma guerra autêntica, insaciável como todas as guerras, imbecil e estúpida como as guerras de todas as épocas.

A enorme serpente bélica começa a tilintar os seus anéis. A coluna avança. Blindados e camiões carregados com toda a sorte de material e logística e centenas e centenas de soldados armados até aos dentes rumam para a frente situada a pouco menos de 60 quilómetros de distância. Com eles dois jornalistas. Preocupado com a nossa segurança o general Macedo do Amaral «Violência», que dirigia a operação da partida, avisa-nos que encaravam a probabilidade da coluna ser alvo de fogo inimigo, aquilo que chamam de eventuais focos de hostilidade por parte de pequenos grupos de guerrilheiros escondidos na mata ao longo da via. «Eles poderão tentar avaliar a capacidade combativa do regimento e desgastar a sua potência letal», disse-nos o general. Entendi que «eventualmente» poderíamos registar uma baixa ou outra, coisa de somenos importância, tal como ensinam os manuais. Constatei que os militares comandam a guerra do mesmo modo que os treinadores de futebol dirigem as suas equipas no campeonato. A diferença reside apenas nos efeitos da munição usada em cada um dos jogos.

Assustada, a cidade do Huambo não dorme. Dentro da cabine do «Unimog» »pressinto os olhos esbugalhados perscrutando nas frestas das janelas. Ouço o bater descompassado dos corações angustiados palpitando no medo e na ansiedade. Engolidos pela escuridão, as silhuetas dos edifícios esventrados por metralha de outras guerras assemelham-se a fantasmas noctívagos amaldiçoando a nossa passagem. O ranger das lagartas dos tanques rompe o hímen do silêncio. No negrume da noite violentada não mais o aroma perfumado da estufa calcorreando as escadas do vento nem o leito de bunganvílias floridas envolvendo amantes no húmus da terra fecunda. No ar, apenas o cheiro da guerra. De facto ela não anda longe dali e está sedenta de
sangue.

Parte II (304)

A tradição do coronel e um macaco-soldado


Sentados placidamente nos bancos dos camiões ou postados por cima dos blindados, os soldados cobrem suas sombras carrancudas com capas impermeáveis. «Chuva teimosa, não gosto combater com o tempo assim», arremessa um soldado, mas o seu cagaço não colhe seguidores. Os outros permanecem indiferentes nas capas, de fora apenas as «Kalashnikov», PKM ou os RPG, armamento novo em folha. O regimento acabava de participar na guerra do Congo Brazzaville, onde ajudara Denis Sassou Nguesso a destituir da Presidência da República o seu rival Pascal Lissouba, presidente eleito democraticamente em Agosto de 1992. Inexplicavelmente Lissouba começou a prestar apoio à rebelião da UNITA em Angola, o que levaria a intervenção das FAA ao lado de Sassou Nguesso. Este entraria triunfal no palácio presidencial de Brazzaville no dia 15 de Outubro de 1997. Eis a nossa guerra doméstica extravasando fronteiras rumo a outras paragens onde o poder se disputa com o ferro das armas. Ou serão as outras guerras quentes e frias nos empurrando para o cadafalso?

O comandante do regimento, o coronel Ngongo Yene, dava mostra de ser muito supersticioso. Decretou, a mim e ao Joaquim Neves, da ANGOP, sem causa que valesse, a proibição de «contactos íntimos» com mulheres nas 24 horas que antecediam a nossa marcha para a Tchicala-Tcholoanga. «Desculpem senhores jornalistas mas na minha tradição é assim, senão trás azar quando entrarmos no fogo!» – disse-nos com verdadeira cara-de-pau. O Neves ripostou baixinho: «vamos respeitar a tradição do chefe, é certo, mas ainda não

vimos mulher alguma desde que chegamos aqui, excepto a do chefe e do seu adjunto». De facto tinham vindo duas mulheres da cidade para o comando do regimento, aboletadas a cabine dum unimog. Após uma ruidosa patuscada na sala do comandante, cuja porta era um encerado militar desajeitadamente suspenso por pregos na parede, as visitantes saíram visivelmente trôpegas levando sacos com logística requisitada da reserva da tropa. Ao subirem para o carro gargalhavam tão alto que os soldados da UNITA em Vila Nova certamente correram para as suas trincheiras pensando tratar-se de novos «Mig» adquiridos pelo governo.

O segundo comandante, por seu turno, era uma figura desconcertante. Andava permanentemente a fazer-nos vénias de cada vez que nos cruzávamos. Transportava um pequeno macaco agachado por cima dos passadores com as duas estrelas de tenentecoronel. O símio também tinha participado nas batalhas vitoriosas que o regimento travara no Congo e ficou como mascote da unidade. Gozava de protecção especial do segundo comandante, que lhe atribuía capacidades de premonição, tidas por imprescindíveis em situação de guerra. Tanto mais que o macaco conseguia distinguir facilmente uma granada de mão de uma banana, segundo nos asseguraram os militares perante a nossa curiosidade. Perfi lado como um soldado aprumado no ombro do tenente-coronel, o malandreco assumia ares de imponência insuportável. Era como se reclamasse o estatuto de membro do comando. Quase o ouvia ordenar entre dentes: «Oiça lá ó sargento, da próxima vez que o “Unimog” for à cidade buscar donzelas para os comandantes, traga também uma pequena aqui para o macaquinho, que ele também gosta, diga se copiou». Era assim que o TC disparava as suas ordens codificadas.

Começamos a conhecer melhor os homens a quem as nossas vidas estariam plenamente entregues dentro de poucas horas. Eles tinham sido mandados regressar ao país por ordem do Estado Maior General das FAA após as primeiras investidas contra os quartéisgenerais da UNITA não terem logrado êxito, em Dezembro de 1998. Inesperadamente as FALA puseram em acção as suas unidades de guerra convencional, 3 brigadas motorizadas dotadas de meios que surpreenderam os primeiros regimentos governamentais que tinham conseguido atingir as periferias do Bailundo, no Bimbe e Nova Aurora, a que se seguiu o recuo até voltarem a entrincheirar-se em Vila-Nova. A contra ofensiva das FALA prosseguiria até a localidade de Boas-Águas, ameaçando a cidade do Huambo. Veio o pânico e um êxodo só comparável ao recuo de 1993, quando as tropas dos generais Ngueto e Sukissa receberam ordens para abandonarem as posições deixando a província entregue à UNITA, após 57 dias de fogo. Desta feita, a responsabilidade pelo caos era atribuída a um alto ofi cial da Polícia que, ao tomar conhecimento do fracasso da investida contra o Bailundo, mandou a segurançapessoal buscar os filhos que se encontravam na escola, com o fito de embarcá-los num dos aviões que estava no aeroporto Albano Machado. Os agentes incumbidos da missão secreta não terão sido tão discretos na sua incursão. A escola ficou em alvoroço e no «passa-a-palavra>> todo mundo ficou então a saber que as forças da UNITA avançavam para a cidade com o objectivo de tomá-la de assalto. O pânico generalizou-se, com o mujimbo a circular célere. «Os “maninhos” estão a vir com tanques, estamos fodidos, os chefes já estão a bazar, bazemos também!», era a frase que se ouvia no meio da confusão reinante.

Foi desse modo que metade da cidade estava com as trouxas à cabeça correndo desalmadamente pela avenida do aeroporto na ilusão de um lugar no avião que se encontrava na placa com os motores ligados enquanto descarregava bombas. Era um espectáculo de êxodo verdadeiramente impressionante. Huambo começava a entrar em situação de caos. Havia deserções e Memórias de um repórter de guerra (2)

A tradição do coronel e um macaco-soldado abandonos inesperados por parte de alguns chefes, sob a alegação de doença súbita ou simplesmente desaparecendo do mapa. Este facto originou a imediata presença do chefe do EMG das FAA general João de Matos. Após consultar a chefia militar, Matos fi cou a conhecer a origem da desordem. Todos apontaram o oficial da Polícia, subcomissário Kandela, dizendo que tinha sido ele o causador ao mandar os guardas buscar os filhos à escola. O povo, que já andava desconfiado por ouvir rebentamentos nas proximidades da cidade, deduziu o resto: se os mandantes estavam a cavar era porque a situação estava realmente feia. O CEMG João de Matos chamou o oficial superior da Polícia para uma conversa entre militares nas instalações do comando do Huambo.

Quando se soube do resultado prático dessa conversa os ânimos serenaram entre a população e os militares. Foi nesse ambiente que começou a esboçar-se a defesa da capital da província do Huambo, na segunda quinzena do mês de Dezembro de 1998. O comando das FAA enviara como comandante da frente o general Armando da Cruz Neto, que acabava de convalescer de ferimentos graves sofridos alguns meses antes durante uma emboscada da UNITA na estrada entre Catengue e Caimbambo, na província de Benguela. Regressado da África do Sul, onde recebeu tratamento médico, o general Armando assumiu o comando das tropas no Huambo praticamente debaixo de fogo, tendo ficado como seu adjunto o anterior comandante, o tenente general Macedo do Amaral «Violência». Armando da Cruz montou o seu posto de comando na zona do Cruzeiro, na periferia da cidade na estrada para o Bié, e de pronto pôs em marcha a sua estratégia de alargamento do cordão defensivo da capital provincial. Referindo-se às constantes deflagrações que nitidamente se ouviam na cidade, o general Armando ordenou aos comandantes dos seus regimentos que em virtude do seu estado de saúde «não queria mais ouvir nenhuma batucada nas proximidades». Nos conhecidos métodos de comando do carismático general, o fim da FAA deveriam de imediato começar a empurrar a UNITA para longe dali.

O DRAMA DOS WILKINSON NO DERRUBE DOS DOIS «HÉRCULES»

DA ONU O regimento proveniente do Congo tinha a missão de abrir caminho até ao Kuito, através de Katchiungo e Chinguar. Eu e o repórter da ANGOP iríamos com ele até a Tchicala. Chegados ali tentaríamos obter imagens do primeiro «Hércules C-130» abatido no dia 26 de Dezembro de 1998 quando se encontrava ao serviço das Nações Unidas. Até ao dia 8 de Janeiro não tinha sido resgatado nenhum dos ocupantes da aeronave. Embora a nível internacional ainda se especulasse sobre o paradeiro dos aviões, o EMG das FAA apresentara-nos um dia antes, no seu comando na cidade do Huambo, um soldado da UNITA, de nome Fernando Januário. Ele afirmou pertencer à II brigada motorizada das FALA e tinha sido capturado em combate na frente de Vila Nova poucas horas antes. As declarações do militar eram verdadeiramente surpreendentes.

O soldado Fernando Januário confi rmou na entrevista que nos concedeu, no dia 7 de Janeiro de 1999, pertencer à unidade da UNITA que efectuou os disparos que causaram o derrube do «Hércules» comandado pelo capitão John Wilkinson, de nacionalidade sul-africana. O militar das FALA Fernando Januário detalhou ter sido a IIª Brigada Motorizada denominada «Brigada Comandante Ben-Ben» a abater as duas aeronaves. A brigada tinha sob sua responsabilidade a cobertura antiaérea da referida zona. De acordo com as declarações do soldado, a IIª brigada era na altura comandada pelo general «Samy». Essas forças, que estavam próximas do Huambo bem como os restantes que cercavam a cidade do Kuito, capital da província do Bié, encontravam-se munidas de mísseis portáteis SAM-16, de fabrico russo com capacidade para atingir com efi cácia alvos até 4.500 metros de altitude, para além dos conhecidos canhões anti-aéreos ZU-23 de 14,5 mm também de origem russa. De acordo com Fernando Januário, a segunda aeronave foi abatida por uma arma ZU-23, enquanto a primeira foi alvejada por um míssil, confirmando ele ter presenciado as duas acções. «Os estroços encontram-se a poucos quilómetros a noroeste de Vila Nova, quem quiser confirmar pode dirigir-se para lá», disse-nos secamente.

Eu e o Neves éramos na altura os únicos repórteres com possibilidades de chegar ao local. Se o conseguíssemos fi cariam dissipadas as dúvidas que pairavam a nível internacional sobre o destino dos aviões. Havia a curiosa agravante do segundo Hércules se ter despenhado um pouco mais a Norte, nas proximidades do Alto Chiumbo, no primeiro dia de Janeiro de 1999, quando tentava localizar os destroços do primeiro avião. O assunto assumia contornos de uma terrível tragédia familiar. Sucedia que um dos tripulantes do segundo «Hércules» era nada mais nada menos que Hilton Wilkinson, de 26 anos de idade, filho de John Wilkinson, o comandante do primeiro avião alvejado. Ele tentara por todos os meios, arriscando desesperadamente a sua vida e a dos outros tripulantes, encontrar o avião do pai ou o que restava dele, fazendo buscas a baixa altitude, ignorando os avisos da torre do Huambo. O desfecho do seu voo seria igualmente trágico como fora a derradeira viagem do seu progenitor.

Foi constatado que em ambos os casos houve desrespeito de algumas normas de segurança que deveriam ser observadas por aviões que voavam naquelas rotas. As autoridades orientavam as tripulações das aeronaves que escalavam os aeroportos de localidades sitiadas como Huambo, Kuito, Malanje, entre outras, a observarem medidas especiais durante as operações de descolagem e aterrissagem. Estas medidas resumiam-se na execução de sucessivas espirais, no espaço interior daquilo que se designava por cordão de segurança.

Por vezes, esse perímetro chegava a reduzir-se de forma drástica devido a pressão das forças da UNITA. Em determinadas alturas escalar esses aeródromos podia significar o derrube do aparelho. Vila Nova caiu em poder das Forças Armadas Angolanas (FAA) no dia 6 de Janeiro de 1999, após uma violenta batalha que envolveu tanques e artilharia na localidade de Boas Águas, também chamada de Heróis de Cangamba. Durante vários dias as forças governamentais fustigaram as linhas da UNITA com sucessivos bom bardeamentos aéreos e de artilharia, lançando fi nalmente um ataque terrestre com blindados de assalto BPM-2, tanques e infantaria, na madrugada do dia 5 de Janeiro. Retirando de Boas-Águas, a IIª Brigada Motorizada das FALA «Ben-Ben» perdera alguma capacidade de combate e estava incapaz de defender Vila-Nova, tendo procurado reorganizar-se em Katchiungo, mais a norte.

No entanto dali seria também desalojada pelos regimentos do governo, retirando fi nalmente para as áreas do Bailundo, onde se juntou a outras forças do exército comandado por Jonas Savimbi com a missão de deter o mais que provável avanço das FAA contra o município do Bailundo, localizado a 40 quilómetros de Vila Nova. Dois jornalistas e o terror do campo de batalha.

A nossa missão era procurar chegar ao local onde se encontravam os destroços dos aviões, ou pelo menos daquele que tinha caído mais próximo de Vila Nova. Quanto ao segundo «Hércules», supunha-se estar mais a norte, na zona do Chiumbo, onde ainda se fazia sentir a presença de unidades da UNITA. Na altura dos preparativos, o comandante do regimento cedeu-me um lugar na cabina do Unimog, para onde subi com a câmara de filmar e outro equipamento fotográfico enquanto o Neves ajeitouse junto dos soldados na carroçaria.

À medida que a coluna avançava para o interior, íamos nos deparando com cenários aterradores que já conhecíamos da guerra. Veículos e tanques de guerra destruídos e queimados. Nas duas bermas da estrada, eucaliptos cortados a meio pelas bombas das potentes armas utilizadas atestavam a envergadura dos combates que ali se travaram em princípios do mês de Janeiro. As árvores pareciam ter sido cortadas por machados afiados.

Ao passarmos por Boas Águas, sentimos o cheiro nauseabundo de cadáveres em decomposição. O motorista do Unimog levantou o polegar para o lado direito, apontando os resquícios da batalha. Dezenas de soldados da UNITA jaziam ao ar livre, próximos das trincheiras e dos «bunkers» construídos para a defesa de Vila Nova após o fracasso do avanço contra o Huambo. No regresso encontraríamos neste local uma equipa dos serviços comunitários da província do Huambo munida de uma escavadora a enterrar esses corpos numa vala comum.

Vila Nova: deserta e assombrada

Pouco antes do meio-dia dessa sexta-feira, 8 de Janeiro, finalmente chegamos à Vila Nova, município de Tchicala-Tcholoanga, onde ficamos entregues aos cuidados de outra unidade das FAA ali estacionada, enquanto o 1º Regimento prosseguia a sua missão, rumando para Katchiungo e posteriormente para o Chinguar, onde sofreu as agruras de uma armadilha da guerra das chanas, segundo soubemos mais tarde.

Quanto a nós, a primeira etapa estava vencida, mas faltava o essencial que era chegar ao local onde se encontravam os destroços. As primeiras informações recebidas do comando da agrupação das FAA localizada em Vila Nova encorajaramnos. O general José Manuel de Sousa, um velho conhecido nosso aquando da campanha para retomada do Huambo em Novembro de 1994, garantiunos que as equipas de reconhecimento e de desminagem tinham conseguido chegar até a referida zona tendo desactivado alguns engenhos.

Os oficiais das FAA informaram-nos que aguardavam naquele dia uma equipa de busca e salvamento da ONU, com a missão de resgatar possíveis sobreviventes e a caixa preta do Hércules. Quando se despenhou, o aparelho levava a bordo 14 pessoas de diversas nacionalidades. «Seria aconselhável esperarem o pessoal das Nações Unidas e irem todos de uma vez, porque temos sofrido diariamente flagelamentos de artilharia de longo alcance e nunca sabemos quando isso acontece, não convém que estejam muito separados», aconselhou-nos o oficial.

Aproveitamos a pausa para dar uma vista por Vila Nova. Ficamos simplesmente assombrados com o cenário que nos esperava. Vila Nova não tinha ninguém! A vila estava literalmente deserta, apesar de não se verifi carem indícios de destruição nos edifícios públicos e residências. Nem um único civil! Apenas os veículos da tropa levando soldados para as linhas de defesa que se encontravam fora da localidade. Para onde fugiu a população de Tchicala -Tcholoanga? Os registos oficiais atestavam de perto que 10 mil pessoas viviam aqui até inícios de Dezembro de 1998. Fugiram todos! Uns para a cidade do Huambo quando a UNITA entrou e outros para o Bailundo, quando as FAA retomaram o município. Era esse o destino das populações desta região.

Dados recolhidos junto das autoridades indicavam que nos dois primeiros meses as acções na região terão causado para cima de dois mil mortos e mais do dobro de feridos. Em centenas de milhares estava também contabilizado o número de populares deslocados das suas áreas de origem por causa da instabilidade. Ficaram assim separadas milhares de famílias e só Deus sabe se algum dia voltarão a encontrar-se.

CENÁRIO DANTESCO NA ZONA DE IMPACTO: OS DESTROÇOS

Repentinamente chegou a ordem de partida para a zona dos destroços mesmo sem o pessoal das Nações Unidas, que ainda não tinha conseguido chegar à Vila Nova. Fomos convidados a subir para uma carrinha, conduzida pelo general José de Sousa, acompanhados de uma escolta de 5 comandos das FAA munidos de armas portáteis anti-tanque e metralhadoras. Inicialmente ficamos surpreendidos com a

velocidade com que o oficial dirigia o veículo, mas de imediato compreendemos os motivos. A zona era relativamente plana e certamente estávamos a ser avistados de longe por equipas de reconhecimento das FALA, que habitualmente forneciam as informações para os fl agelamentos de artilharia a partir das suas linhas de defesa, o que viria a acontecer de facto mais tarde, mas nós já estávamos longe.

O general Sousa dirigia a viatura por uma encosta não muito pronunciada, quando avistamos fi nalmente o amontoado de destroços. Facilmente se podia descortinar que se tratava do Hércules que no dia 26 de Dezembro de 1998 levantara do Huambo com rumo a Saurimo, no nordeste do país ao serviço da Organização das Nações Unidas, mas não cheTínhamos diante de nós um quadro da mais absoluta irracionalidade. Os destroços estavam cobertos com ramos e folhas de árvores supostamente para não serem avistados do ar. Os ramos tinham secado com o passar dos dias e agora distinguiam-se com facilidade bocados do que foi um Hércules C-130. A parte de um dos trens de aterragem mostrava duas rodas intactas. Apenas uma asa era visível, o que faz supor que a outra terá desintegrado ao sofrer o impacto do projéctil.

Chegou então a parte macabra daquele espectáculo horripilante: no meio do metal retorcido apareciam cadáveres humanos em avançado estado de decomposição. Os corpos estavam carbonizados, o que tornava difícil contabilizá-los, quanto mais tentar qualquer identificação. Ao lado de uma peça destroçada havia mais um cadáver completamente mutilado. Apenas ossos queimados. Entre os ramos secos e as peças da fuselagem amachucada conseguia-se distinguir ainda um braço e partes de crânios humanos igualmente irreconhecíveis. Durante incríveis 15 minutos e com a respiração praticamente suspensa fotografei e registei em vídeo aquele cenário dantesco. Foram essas as imagens que doze horas depois foram exibidas nos noticiários das principais televisões do mundo.

Parte III

No dia 26 de Fevereiro de 2000 estava uma manhã de sol aberto na Base Aérea Operacional da Catumbela «BAOC» quando um numeroso grupo de jornalistas nacionais e estrangeiros provenientes de Luanda desembarcou às pressas pela rampa de descarga de um «Iliutchine» acabado de estacionar na placa. No tempo a que aludimos, era um acontecimento banal esse tipo de aeronave cruzar os céus de Angola e poisar nos aeroportos do país. Os aviões faziam parte de um lote de cargueiros alugados pelo Governo angolano a empresas privadas da antiga URSS, herdeiras do espólio da gigante «Aerofl ot». As autoridades procuravam compensar os efeitos do bloqueio terrestre imposto pela UNITA às principais cidades do centro e leste, transformando-as em autênticas ilhas. O «Il» aterrara numa das duas pistas do aeroporto militar da Catumbela. Era aqui onde as Forças Armadas Angolanas (FAA) tinham instalado o seu posto de comando praticamente desde 1993, a seguir à renúncia dos resultados das eleições de 1992 e o retorno à guerra protagonizado pela UNITA. Efectivamente era a partir daqui que o então CEMG João Batista de Matos dirigia a luta contra o movimento rebelde.

Eu e o repórter da Rádio Nacional de Angola, o Nelson Pedro, já nos encontrávamos na Catumbela quando os ansiosos visitantes munidos com câmaras fotográfi cas, de filmar e gravadores de som foram levados num pequeno autocarro para uma sala próxima da placa. Havia nas conversas um ambiente de irreprimível expectativa. Ao certo, ninguém sabia que facto seria reportado ou quem seria o entrevistado. Alguns jornalistas especulavam em voz alta que «fontes privilegiadas» tinham garantido que o pessoal seria reembarcado em helicópteros e mandados para o cenário das batalhas sangrentas que decorriam na região do planalto central. Suspeitava-se que algo de importante teria acontecido ali. Afi nal tudo não passou de mera especulação entre os repórteres que lutavam entre si por um «furo». Muito cedo as coisas se esclareceram quando um oficial dos serviços de informação das FAA anunciou que se tratava de uma conferência de imprensa, ali mesmo na BAOC, a escassas duas centenas de metros de distância do local onde estava estacionado o «Iliutchine» que trouxera os repórteres de Luanda e os levaria de volta pouco tempo depois. Eu e o Nelson Pedro fi caríamos na Catumbela, porque estávamos autorizados a isso pelo EMG das FAA. Na placa encontravam-se também estacionados alguns bombardeiros «Sukkoi» rodeados por pessoal de manutenção e de reabastecimento trajando o uniforme azul das FAN. Havia tractores com atrelados carregados com bombas e «rockets» vindos dos paióis até ao local onde se alinhavam os SU-22. Um camião-cisterna com jetfuel estava igualmente no local. No ar rodopiava o característico cheiro do combustível usado nos aviões. Aquelas máquinas de guerra não se encontravam ali a fazer fi gura. Estavam em pleno serviço e era fácil perceber isso.

GENERAL OCHOA SANCHES: «CONEXION CATUMBELA»

O aeroporto militar da Catumbela foi construído em tempo recorde na década de 80 pelas forças internacionalistas cubanas que estavam em Angola desde os primórdios da proclamação da independência nacional, 1975, com o objectivo de travarem as investidas do exército sul-africano da era do «apartheid». Foi escolhido um local privilegiado a escassos metros do mar, entre as cidades de Benguela e do Lobito, no centro do país. Tratou-se de um projecto realizado secretamente pelos cubanos supervisionado pessoalmente pelo célebre general Arnaldo Tomas Ochoa Sanches, um carismático ofi cial que chefiou o Comando das Forças Armadas Revolucionarias (FAR) de Cuba em Angola em mais de uma ocasião. Ochoa terminaria fuzilado nos arredores de Havana no dia 13 de Julho de 1989 pelos seus camaradas de armas, após cair em desgraça juntamente com 13 altos oficiais cubanos acusados por uma corte especial.A serem verdadeiras as acusações proferidas contra Ochoa quanto ao trafico de diamantes, marfim e madeira, entre outros negócios, tendo como palco o território angolano, é obvio concluir que a base da Catumbela teria uma conexão necessária com esses negócios, fossem eles do conhecimento de alguns dos lideres revolucionários da ilha ou não.

O facto seria, entretanto, largamente especulado na imprensa anti-cubana, mas nada fi caria provado no decurso do processo. O certo é que na época, a entrada e saída de aeronaves cubanas através das pistas da Catumbela transportando pessoal e equipamento processavase fora do controle das autoridades angolanas. Não existia qualquer comando conjunto na base da Catumbela e o seu extenso perímetro de segurança, totalmente arborizado e guarnecido, não permitia conhecer o que lá dentro se passava. Pelo que se saberia depois, aquando da sua detenção e julgamento em Havana, não foi só de guerra que o general Ochoa tratou durante o seu consulado em Angola.

Devido à sua excepcional localização a Base Aérea Operacional da Catumbela, conhecida nos meios militares pela sigla «BAOC», viria a jogar um papel capital a favor das forças governamentais em todas as etapas do confl ito armado contra a UNITA. Partindo das pistas do aeroporto da Catumbela, os vectores de combate da Força Aérea Nacional FAN, sobretudo os Sukkoi-22 e 25, tinham capacidade de alcançar alvos em grande profundidade em várias áreas do território nacional, sobretudo na região centro. Como se afi rmou, a importante base encontrava-se inicialmente sob uso restrito da Força Aérea Cubana, até à sua recepção pelos militares angolanos, na sequência da assinatura dos acordos de Nova York, em 1989. Aconteceu que milhares de soldados das FAR que cumpriram a missão internacionalista em Angola saíram directamente da base da Catumbela com destino ao seu país.

O general Ochoa Juarez excomandante do contingente cubano em Angola enfrentaria em Havana uma corte marcial que o condenaria inapelavelmente à morte por fuzilamento por supostos desvios de conduta durante a missão em Angola. Ele foi igualmente confrontado com a grave acusação de manter negócios com o narcotráfico internacional. Sentado no banco dos réus e amarfanhado na sua honra de militar de carreira, após lhe terem sido retirados os galões de general, Ochoa reconheceria terem existido tais transacções mas defenderia, sem sucesso, a tese de que os montantes financeiros provenientes das mesmas eram sistematicamente canalizados através de operações ultra-secretas para sustentar a débil economia da ilha caribenha, sufocada por um pesado embargo imposto pelos EUA desde que triunfara a revolução de Fidel, na qual o próprio Ochoa participara como guerrilheiro.

GENERAL OCHOA AL PADEDÓN

Durante o julgamento, cujas sessões tinham uma versão oficial publicada no diário «Granma », órgão oficial do Partido Comunista de Cuba, o general formado na Academia de Frunze na Ex-URSS, declararia que as operações eram realizadas com o pleno conhecimento de alguns dos líderes do país, facto corroborado tempos depois por dissidentes fugidos de Havana, tal como Juan Benemelis, ex-director para África do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Cuba e autor do livro- Castro, subversão e terrorismo em África, Europress 1986. Contudo, os dirigentes do país negariam completamente estas alegações afirmando não subscrever as actividades de Ochoa fora do âmbito do comando militar em Angola. Procurando parecer sereno durante todo o processo, a dada altura o general Ochoa viu o acusador do Ministério das Forças Armadas Revolucionárias apontar-lhe o dedo pedindo sua cabeça a fi m de saldar com sangue a traição contra-revolucionária. Estava ditada a sentença. Desde os primórdios da revolução, a lei cubana é implacável para os que considera traidores. O nome de Ochoa passou a constar da extensa lista. Foi nessas circunstâncias que se processou a eliminação do chefe militar cubano em Angola, sobrevivente da célebre coluna de Camilo Cienfuegos que, conjuntamente com outras duas colunas, chefi adas respectivamente por Che-Guevara e Raul Castro, tomaram o poder em Cuba em 1959, dando início ao lono consulado de Fidel Castro Ruz.

Em 1959 Ochoa Jurez era um revolucionário imberbe que se juntara ao exército rebelde na luta contra o ditador Fulgêncio Batista. Existe um registo pouco conhecido da maioria dos angolanos. Quando saíu a sentença de morte para o general, houve um pedido público de clemência formulado pelo Presidente José Eduardo dos Santos ao líder cubano Fidel Castro, suplicando perdão por «serviços relevantes» prestados à pátria angolana pelo condenado. De nada adiantaria a embaixada do Presidente angolano. Fidel, «el comandante », faria tábua rasa aos vínculos sagrados e generosos do «Internacionalismo Proletário» que tão fervorosamente defendera nos seus longos discursos durante a visita efectuada a Angola em Março do ano de 1977. Em defi nitivo, não haveria perdão para Ochoa. O general seria passado pelas armas após a negação do indulto por parte de «el comandante». O certo é que até aos dias presentes o mito Ochoa sobrevive aos anos. Tanto em Angola como em Cuba, muitos acreditam que num dia qualquer, o vulto do imponente general Arnaldo Tomás Ochoa Sanches emergirá das brumas do passado para ocupar o seu lugar na trincheira da história ao lado de «sus companeros».

A MANHÃ ENSOLARADA DE JANEIRO NA BAOC SEM OCHOA

Nessa ensolarada manhã de Fevereiro de 2000, na BAOC, o ambiente fervilhava, mas já ninguém lembrava se alguma vez o general Ochoa e seus soldados cubanos fumando tabaco havano forte tivessem alguma vez estado ali. É certo que os protagonistas daquele dia também eram militares, mas tratavamse de militares angolanos. Os tempos também eram outros. Estávamos numa altura em que a guerra civil entre as forças governamentais e o movimento rebelde UNITA comandado por Jonas Savimbi tinha atingido a velocidade de cruzeiro, sobretudo na zona centro. Registavamse as maiores batalhas de África com o envolvimento de técnica blindada, artilharia de grosso calibre e aviação. Estavam frente à frente dois poderosos exércitos de um mesmo país. Consumavase uma espiral bélica sem precedentes nos registos das guerras africanas. Na verdade, após as celebres batalhas da Segunda Guerra Mundial nos areais escaldantes do Norte de África entre as forças dos generais Montgomery, por parte dos aliados, e do marechal Von Rommel, do III Reich, os anais das guerras em África apenas registaram como batalhas dignas desse nome os combates ocorridos no Kuito-Kuanavale, no extremo Sudeste de Angola, em 1990, entre as forças coligadas de Angola e de Cuba, de um lado e das Sadf da África do Sul e da UNITA do outro.

Desde Dezembro de 1998 os beligerantes angolanos tinham transformado um extenso território maior que a França e a Alemanha juntas num imenso campo de batalha, onde se lutava ferozmente. No total as duas forças tinham escalonados no terreno milhares de soldados que escreviam com pólvora e sangue a História recente de Angola, longe das manchetes dos media mundiais, com excepção da comunicação social portuguesa que demonstrava estar preocupada apenas em escalpelizar a incapacidade dos angolanos em resolverem por si próprios os seus antagonismos políticos, após os colonos terem deixado, em 1975, o território que consideravam a jóia da coroa do império português entregue a si própria.

Na BAOC o Estado-maior General das Forcas Armadas Angolanas chamara os jornalistas para apresentar um ofi cial superior das forças militares da UNITA. Na improvisada sala de imprensa gerou-se uma expectativa pouco comum e os repórteres acotovelavam-se. Era habitual o Governo mostrar em público ofi ciais das FALA capturados em combate ou simples desertores, que eram depois utilizados sobretudo em campanhas de propaganda na tentativa de desmembrar as hostes inimigas. Contudo, naquele dia algo de diferente estava a acontecer. De quem se tratava afinal? Não tardou e a resposta estava encontrada. Trajado com um uniforme de campanha das FAA veio um homem atarracado, de poucas mas concludentes afirmações. Durante a sua explanação utilizou mapas e diagramas com notável desenvoltura.Tratava-se de um militar com mais de 20 anos de carreira. Dele os jornalistas ouviriam revelações surpreendentes que ajudaria a compreender o que se passava na guerra que devastava o planalto central de Angola. Tratava-se do coronel Boaventura Cangundo, ex-chefe de operações de uma das unidades compactas do exército convencional da UNITA, a III Brigada de infantaria motorizada. Ele tinha sido capturado durante a renhida batalha do Cunhinga, a cerca de 65 quilómetros do Kuito, província do Bié.

Outro pormenor que chamou a atenção foi o facto do então CEMG das FAA general João de Matos acompanhar pessoalmente a conferência de imprensa rodeado do seu staff que incluía antigos generais da UNITA. Daí aferir-se a importância das informações em posse do coronel Cangundo. Alguns dos militares que acompanhavam João de Matos, como os generais Sachipengo Nunda, Implacável e Jacinto Bândua, tinham sido num passado recente comandantes do coronel Boaventura Cangundo, os chamados «maisvelhos » na hierarquia das FALA. Era usual na propaganda feita no seio dos militares da UNITA que esses generais há muito tinham sido mortos pelo Governo, logo a seguir às habituais entrevistas aos jornalistas. Quando a rádio governamental passava as declarações nas emissões de programas de propaganda e contra propaganda, na UNITA dizia-se que eram apenas fitas com gravações e que os donos das vozes não faziam mais parte do mundo dos vivos. Ao encontrá-los do lado das FAA, tanto na área operacional onde que foi capturado, como no Posto de Comando avançado da Catumbela, o coronel Cangundo rapidamente aceitou colaborar com os seus captores de tal modo que, para espanto de todos os jornalistas presentes, afirmaria de viva voz que se encontrava pronto a voltar para a frente de combate, mas desta vez com o uniforme das Forcas Armadas Angolanas. «Porque o faria assim tão rapidamente, o que mudou em si, após ter estado mais de 25 anos a lutar pelos ideais da UNITA»? perguntei-lhe. O coronel Boaventura respondeu de modo taxativamente seco: «Os nossos mais-velhos estão aqui e eu falei com eles, entendo agora que o problema da guerra em Angola é o Dr. Savimbi e se essa guerra não parar imediatamente milhares de angolanos inocentes que estão na mata poderão sucumbir se acompanharem essa trilha sem rumo».


Parte IV

1983. Na segunda semana de Agosto segui a bordo de um helicóptero francês «Allouette III» da FAPA (Força Aérea Popular de Angola) para o município do Cubal onde tinha ocorrido uma sabotagem da UNITA contra a barragem hidroeléctrica do Lomaum, construída no curso do rio Catumbela, num local situado a 150 quilómetros a sudeste da cidade de Benguela. Na verdade tratavase da segunda acção de envergadura a ocorrer ali num espaço relativamente curto. Na altura, observava-se em Angola uma conjuntura militar marcada por uma vísivel alteração na correlação das forças envolvidas na guerra civil que opunha o movimento liderado por JM Savimbi ao exército governamental. A UNITA, que antes realizava predominantemente acções de baixa intensidade, como emboscadas a viaturas isoladas ou o levantamento de aldeias , conseguira, fi nalmente, fazer penetrar batalhões de comandos saídos das áreas de treinamento de Mavinga e da sua base central na Jamba (Licua), para norte da linha férrea de Benguela. Sob comando de oficiais formados no Marrocos e na África do Sul, a UNITA desdobrou forças de combate articuladas num escalão principal, dotadas de flexibilidade operacional com capacidade para serem empregues em vários pontos do território nacional, em qualquer momento.

Os soldados rapidamente podiam agrupar-se ao nível de batalhão, bem equipado com armamento portátil potente e comunicações efi cientes. Pontualmente, à esses contingentes eram agregadas forças de escalão territorial, as chamadas colunas regionais, reforçadas por destacamentos de guerrilheiros e de milícias existentes nas bases espalhadas pelas regiões centro, sul e leste. A permanente elasticidade na agrupação de forças em diferentes locais era susceptível de criar cenários de ilusão quanto ao verdadeiro número de combatentes ao dispor da UNITA. Era o retorno à genialidade de Sun Tzu, o grande general chinês do séc. IV Ac.: uma força militar não tem forçosamente uma forma constante, do mesmo modo que a água não tem forma constante. Obtém-se vitória mudando e adaptando-se segundo o adversário.

Por seu turno, o manual de guerrilha de Mao Tsé Tung «Guerrilla Warfare, NY 1979» , considerada a bíblia da insurreição armada, estabelece com ênfase que os rebeldes devem atacar sempre em superioridade numérica. No primeiro terço dos anos 80, à medida que ia logrando algum sucesso, a UNITA foi-se tornando extremamente ousada nas incursões contra objectivos económicos importantes, incluindo os que beneficiavam de guarnição por parte de efectivos governamentais das FAPLA e da sua milícia, a ODP (Organização de Defesa Popular). Essa fase corresponde ao estágio da teoria maoista, segundo a qual após um longo período de operações especiais de pequena envergadura nas quais mantém a iniciativa tática, as forças rebeldes passam a desafi ar o oponente em acções de maior escala.

Os resultados do ajustamento estratégico da UNITA, consubstanciado numa maior flexibilidade tática e no aumento do poder de fogo dos seus contingentes, não se fizeram esperar. Os ataques passaram a suceder-se numa espantosa sequência de eventos de grandes proporções bélicas, atingindo níveis de espectacularidade nunca antes observados. A UNITA entrara, de facto, numa fase de rebelião aberta com a violência a evidenciar uma intensidade crescente, ficando claro o objectivo de derrubar pela força das armas o poder instituído em Angola pelo MPLA.

A primeira investida contra o Lomaum ocorrera no início desse mesmo ano de 1983, precisamente no dia 17 de Janeiro. Como consequência da sabotagem efectuada, as províncias de Benguela e do Huambo, duas das mais importantes do país, bem como a localidade do Chinguar, na província do Bié, com mais de um milhão de habitantes no total, ficaram literalmente às escuras. Paralisaram também as poucas indústrias que conseguiam ainda funcionar. Ao ordenar aos seus homens que voltassem a dinamitar a barragem já de si paralisada, J. M. Savimbi dava sinais inequívocos dos seus propósitos arrasadores.

Para o governo angolano e as suas forças armadas, as FAPLA, as incursões da UNITA tinham a mão do Batalhão 32 ou «Batalhão Búfalo», uma força de elite formada na África do Sul pelo coronel das SADF Jan Breytenbach e constituída por desertores dos vários exércitos que tinham lutado em Angola em 1975 contra o MPLA e seus aliados cubanos, por altura da proclamação da independência nacional. Com o fim do regime segregacionista na África do Sul, o «Batalhão Búfalo» seria extinto por ordens do presidente Frederic De Klerk, em 1990.

RUMO À DEVASTAÇÃO: AS FAPLA E A CONTRAINSURREIÇÃO

Era manhã e despontava um sol tímido próprio da época de cacimbo, quando o nosso «Allouette» poisou num terreno baldio próximo da barragem. Já ali estavam em acção os homens da 98ª brigada das FAPLA, deslocados a partir da cidade do Cubal onde se baseava o seu comando, tentando restabelecer a situação. O cenário em volta era de pesada destruição. Destacava-se uma curiosa inscrição pintada em vermelho vivo num dos muros da albufeira: «General Savimbi, estratega militar de craveira internacional- Santinho (Eduardo dos Santos) não tem capacidade ».

Nesse dia as principais emissoras e agências ocidentais, tal como a Reuters, noticiam o acontecimento. A UNITA reivindica o ataque a partir da sua representação em Lisboa, justificando-a como parte da luta pelo fim do comunismo e a instauração de uma democracia em Angola. O comunicado augurava que vislumbrava-se o estertor do regime marxistaleninista do MPLA que detinha o poder desde Novembro de 1975. Era o princípio do fim, segundo a emissora VORGAN, que emitia a partir da Jamba.

No início de 1983 Angola começara, de facto, a dar indícios de caminhar a passos largos para a devastação económica. Desenhava-se no horizonte dos angolanos um caos social sem precedentes, devido à destruição de importantes infra-estruturas. A instabilidade e a insegurança começaram a tomar conta de tudo e de todos. Os rebeldes esperavam o imediato esgotamento material, moral e psicológico do governo, cujas forças principais se encontravam entricheiradas na região Sul, enfrentando as agressões da África do Sul.

Em termos militares as FAPLA não possuiam meios para desenvolverem uma guerra de contra-insurreição com capacidade de fazer face ao poderio acumulado pela UNITA. Os comandantes militares governamentais tentavam encontrar a fórmula para adequar e adaptar as suas tropas ao novo tipo de guerra que se apresentava nos diferentes cenários. O país é dividido em Conselhos Militares Regionais. São criados os centros de formação de comandos no Cabo Ledo, a pouco mais de 100 quilómetros a Sul de Luanda, e em Benguela, o Centro de Instrução do Kasseque (CIK). A milícia ODP começou a ser enquadrada em batalhões territoriais, funcionando como forças auxiliares, contudo a extensão do território condicionava a ocupação efectiva de posições tomadas pelas forças especiais e a UNITA explorava convenientemente essa nuance.

O RAPTO DOS CHECOS NO ALTO CATUMBELA E O MAJOR JAKA JAMBA

Menos de dois meses após terem atacado o Lomaum, as forças da UNITA investem contra a localidade do Alto Catumbela, 18 quilómetros a sudeste da Ganda, na província de Benguela. Ali, nas margens do rio Catumbela, estava instalada a conhecida fábrica de papel e celulose. Era ela o alvo escolhido. Segundo depoimentos recolhidos na altura, a acção das FALA desenvolveu-se com uma eficácia que indiciava procedimentos táticos inovadores só possíveis de serem suportados por uma base de inteligência e reconhecimento similar à utilizada no Lomaum. Foram raptadas centenas de pessoas, entre as quais um grupo de 66 cidadãos checoslovacos que prestavam assessoria técnica aos trabalhadores angolanos, ao abrigo de um acordo bilateral assinado entre Angola e a antiga República da Checoslováquia. A cifra abrange os seus familiares também tomados como reféns, incluindo crianças e um cidadão português. Eles seriam libertados cerca de um ano depois, numa paranóica campanha de propaganda que teve como palco a base da Jamba e como actor principal o próprio Jonas Savimbi, que alinhou com um dos seus coadjutores neste caso, o então major das FALA Almerindo Jaka Jamba. O cidadão português Mário M. de Oliveira, que viveu a odisseia dos cativos do Alto Catumbela, contou ao Jornal «Expresso» em 1984, após ser libertado, que um dia recebeu uma visita inesperada, após ter percorrido a pé 1500 quilómetros durante 100 dias escoltados por soldados armados da UNITA. «Era o major Jaka Jamba, que eu conhecia como antigo ministro no Governo de transição, em 1975. Apareceu no acampamento, acompanhado de vários oficiais, e dirigiu-se directamente à minha casa.

Enquanto os outros ficavam de fora, aceitei ter uma troca de palavras com ele(...) Perguntou-me se não me importava de prestar declarações a algum jornalista estrangeiro que por ali aparecesse a querer saber da nossa situação. Mostrei-me de acordo (embora nunca ninguém me tivesse vindo entrevistar). O meu visitante avistou-se também com o cubano, e depois desapareceu ».

«Já de noite - prosseguiu o antigo refém - fomos chamados ao jango para assinar uma declaração segundo a qual nos comprometíamos a não regressar a Angola». “Este documento é uma das condições da UNITA para a vossa libertação”, dissenos o brigadeiro que dirigia a operação. E se quisessemos voltar a Angola - acrescentou - seria por nossa própria conta e risco. A UNITA não nos daria nova oportunidade. Perante tal chantagem, quem pensaria duas-vezes? Evidentemente que subscrevemos o maldito papel».

Mário de Oliveira no seu “Relato de Um Refém da UNITA” publicado no Expresso conta que depois os homens da UNITA chamaram os cativos para o interior de uma casa iluminada como em dia de festa. No amplo salão, serviam bebidas. A um canto, encontrava-se «um grupo de homens brancos, esquálidos, de longos cabelos e barbas que não consegui identificar...Em seguida, mandaram-nos penetrar num jango, rodeado por um enorme aparato de segurança e em cuja entrada estacionava uma viatura blindada. Sentado no comprido banco do recinto, acompanhado do seu estadomaior, entre os quais reconheci o brigadeiro N´Zau Puna e o major Jaka Jamba, vimos o homem que nos tinha trazido até ao coração da floresta - Jonas Savimbi... (Ele) disse-nos que o documento por nós assinado impedia-nos de voltar a Angola durante o conflito. “Não vos concederemos segunda hipótese”, avisou Savimbi».

Quanto aos cidadãos checos que encetaram igualmente uma longa viagem até ao Kuando-Kubango, o sr. Svoboda, então vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da Checoslováquia, seria obrigado a viajar até à Jamba e conversar com Savimbi com a promessa de que o seu país não enviaria mais cidadãos para Angola. Chegou-se a ventilar que a UNITA exigira, em troca da libertação dos reféns, o fornecimento de material de guerra, sobretudo metralhadoras «Kalashnikov » e munições de calibre 7,62mm, mas até hoje escasseiam as provas de que esse envolvimento se tenha alguma
vez concretizado.

O V Congresso de Mavinga e a Operação «Protea» das SADF

União Nacional para Independência Total de Angola liderada desde a sua fundação, em 1966, por Jonas Malheiro Savimbi, reivindicava no cenário das operações uma viragem qualitativa na capacidade operacional das suas forças. Após o V Congresso, realizado numa de suas principais bases em Mavinga, no extremo sudeste do país, no início da década de 80, as FALA lançaram no terreno vários batalhões semi-regulares e várias colunas regionais naquilo que foi considerada a maior ofensiva rebelde contra o governo até então realizada.

A expansão da guerrilha para norte e nordeste tinha o suporte tático do exército sul-africano e visava o isolamento de Luanda atravès da criação de uma nova frente denominada «Esperança Negra». Visava igualmente a conquista de áreas ricas em diamantes nas províncias das Lundas. O apoio sul-africano viria a tornar-se mais efectivo com a grande invasão da província do Cunene em Agosto de 1981 e a subsequente ocupação de uma faixa tampão na fronteira sul. Estranha coincidência, é neste ano que o republicano Ronald Reagan assume o poder nos EUA e de imediato Washington veta, em Agosto, uma resolução do Conselho de Segurança da ONU a condenar a intervenção militar sul-africana que estava em curso no Cunene no quadro da chamada «Operação Protea» que, na sua fase de consolidação, em Setembro, seria designada de «Operação Daisy» com o reforço de mais contingentes de soldados.

No rol das inúmeras coincidências ocorridas ao longo do ano de 1981, no último dia do mês de Novembro, a refi naria de Luanda era atacada por uma força sul-africana de comandos. Mais uma vez, no mesmo dia a UNITA reivindicava a partir da sua delegação em Lisboa terem sido os seus soldados a realizarem a sabotagem. O que se soube depois é que um militar da UNITA integrava o comando sul-africano. Tratava-se de Antero Vieira, promovido a general em 1991 e uma das vítimas da purga ocorrida em Abril de 2000 na sequência da perda do bastião do Andulo.

O sustentáculo proporcionado pelas SADF (South African Defense Forces) começava brindar as FALA com uma gradual autonomia operacional em vários teatros. Perante a opinião publica isso evidenciava a elevação da capacidade da UNITA, que passaria a estar em condições não só de atacar posições defendidas pelo governo, mas igualmente lhe ser reconhecida a possibilidade de manter e administrar pontos vitais do espaço territorial conquistado na sua marcha para tomar de assalto o poder instalado em Luanda. Havia um slogan segundo o qual a «Jamba era o ponto de partida e Luanda o ponto de chegada». A transposição da linha do CFB era o prenúncio do avanço em direcção à Luanda.


Parte V (edição 307)

Carlos Castro, um jornalista da RTP que esteve em Angola em 1999 a fazer uma cobertura na frente do Bié, contou num livro sobre a reportagem em zona de conflitos, que certo dia dois soldados angolanos entregaram-lhe um prisioneiro a fim de que o interrogasse, após o que queriam que o repórter filmasse o momento em que lhe cortariam a cabeça. No relato, cuja veracidade não conseguimos apurar, Castro afirma que naquele momento deixou de ser o jornalista vindo de Lisboa incumbido unicamente da missão de reportar os acontecimentos, avisado que jamais deveria tentar influenciar o desenrolar dos mesmos. Envolvido inesperadamente no drama, viria a dar conta que um jornalista era também e acima de tudo um ser humano. Perante os seus olhos incrédulos, estava prestes a esvair-se a vida de um semelhante. Concluiu, então, que a sua actuação naquele inusitado momento deveria ser não só negar-se a filmar o macabro episódio, mas igualmente impedir que a intenção dos soldados se concretizasse.

O jornalista tocara a frágil fronteira entre a cobertura do conflito e o dramatismo humano, conforme escreveu Dalila Matos. Longe dos horrores da deflagração das bombas despedaçando soldados nos campos de batalha e dos chamados efeitos colaterais entre a população civil, resultantes da situação de conflitualidade nas regiões para onde são enviados, as chefias de redacção e editores exigem que seus jornalistas sejam unicamente imparciais. Eles são obrigados a evitar que as suas convicções e emoções pessoais interfiram no julgamento das realidades e dos cenários. «Reportem unicamente os factos que encontrem, quanto mais rápido melhor, para não sermos ultrapassados pela concorrência», ordenam amiúde os editores.

A imparcialidade, tida como um dos valores éticos mais importantes para o jornalismo, não tem como seu equivalente incontornável uma neutralidade, por vezes cúmplice e comprometida, face à guerra e seus horrores. No episódio que conta, será que Carlos Castro teria se sentido humanamente realizado se enviasse para a redação da RTP imagens de um prisioneiro sendo decapitado por dois soldados?

DE JACK LONDON À FAIXA DE GAZA

Foram os americanos os que começaram a reportar para os jornais o que se passava nos campos de batalha, isso logo no início do século XX. Desde que Jack London e os pré-repórteres de guerra chegaram com suas câmaras e blocos de apontamentos junto dos combatentes nas trincheiras, a guerra nunca mais foi a mesma. A revolução bolchevique desencadeada por Lénine na Rússia foi reportada. Até hoje podemos observar os registos captados no decurso da I Guerra Mundial e da Guerra Civil Espanhola. Na década de 70, os relatos de muitos repórteres enviados para o Vietnam influenciaram a opinião pública americana, que se levantou em manifestações que viriam a provocar a retirada incondicional dos EUA daquele país asiático e o consequente fim da guerra. O povo do Vietnam encontraria assim a paz.

A invasão e actual ocupação norte-americana do Iraque ilustra o quanto sofisticada se tornou essa actividade para os grandes grupos e sistemas de média. Porém, chegados ao local, os jornalistas apercebemse que os «marines» não estão apenas a atirar contra insurgentes armados. Existem famílias inteiras sendo soterradas pelas explosões das potentes bombas lançadas dos aviões da USAIR FORCE.

Por seu lado, o eterno conflito israelo-árabe, com maior acuidade para a palestina e a explosiva situação na faixa de Gaza, decorrente da recente invasão dos blindados israelitas do «TSAHAL», têm servido de laboratório para novas experiências sobre a influência dos média no rumo que ganham os conflitos. O paroxismo que envolve os funerais das vítimas palestinianas, elevadas ao grau de mártires, sobretudo em Gaza, é um alvo apetecido para as câmaras dos repórteres. Misturados na multidão facilmente se identificam figurantes «enfurecidos» lutando para aparecerem diante das câmaras. Lamentavelmente, neste afã muitos profissionais, sobretudo os «free-lancer» têm encontrado a morte, ao procurarem competir entre si na busca das imagens mais marcantes. Na última guerra entre Israel e o «Hezzbolah» no Líbano foram igualmente encontrados sinais de manipulação de imagens com recurso à tecnicas digitais. Objectivo: influenciar a opinião pública na sua visão do problema para que a partir dali essta passe a adoptar um determinado comportamento.

Existem países onde a reportagem de guerra se tornou uma variante autónoma do jornalismo, com inúmeros profissionais a dedicarem-se exclusivamente à essa actividade. O seu trabalho tem inspirado a publicação de dezenas de livros. Algumas dessas reportagens são consideradas obrasprimas da literatura mundial.

Todavia, na impossibilidade dos enviados serem remunerados em «full-time» pelos órgãos de comunicação para os quais reportam, devidos aos elevados custos em seguros de vida, surgiu, quase sorrateiramente, uma variedade de jornalista kamikaze, chamada de «free-lancer». Estes são pagos por peça, num valor regateado com os editores tal como se compram legumes no mercado informal. Não existe preço tabelado. A mercadoria, isto é, a notícia, vale consoante a importância que se atribui ao conflito, dentro de uma visão de contexto que não se pauta necessariamente por valores éticos e dramas humanos. As imagens de um tiroteio entre adolescentes num colégio no Arkansas valerá infinitamente mais do que a reportagem de um bombardeio a um campo de refugiados no Darfur.

O CASO ANGOLANO: O « JORNALISTA-QUE-FOI-À-GUERRA»


Propriamente dito não temos em Angola repórteres de guerra profissionais. Em nossa opinião parece não existirem, pelo menos por enquanto, motivos para tal categoria de trabalhadores na comunicação social. Na verdade não existe nenhum registo a atestar que jornalistas angolanos se tenham deslocado para cenários de guerra no estrangeiro, com o único fito de reportá-los para órgãos de comunicação nacionais, tal como acontece com outros países.

Nós, os «jornalistas-que-foram-à- guerra» em Angola não carpiríamos nenhum arrependimento se a História não nos tivesse proporcionado a ingrata oportunidade de lá termos estado. Os últimos anos do conflito foram humanamente insuportáveis para todos os angolanos. Jornalistas como o Joaquim Neves, o Nelson Pedro, o grande repórter Luis Domingos, o Alves Fernandes, o Amorim, e outros, terão por certo vertido lágrimas como eu, perante quadros verdadeiramente avassaladores que muitas vezes nos foram dados a ver. Nós fomos testemunhos do nosso próprio holocausto. Vimos angolanos como nós trespassados por metralha, crianças do nosso país agonizando por falta de alimento, pontes, igrejas, escolas a irem para o ar como bonecos de papel. Perdemos familiares, amigos, vizinhos, compatriotas nossos, sangue do nosso sangue jorrando inocente sobre a terra que Deus nos deu para vivermos felizes e em Paz. Definitivamente, quanto a mim, a parcialidade na cobertura do conflito que grassou em Angola esteve do lado dos que tentaram cobrar-nos uma interesseira neutralidade jornalística, enquanto víamos nossa própria casa ser devorada pelas chamas expelidas pelo dragão infernal.

Muitas vezes fomos confrontados com a injusta acusação, por parte de colegas estrangeiros, de reportarmos a guerra, sob uma visão de comprometimento político ou de compromisso ideológico com uma das partes beligerantes. Como se tívessemos vindo doutra galáxia e aportado aqui para vermos a nossa gente a morrer e com ela a nossa amada pátria exaurir. Basicamente, com eles, partilhávamos uma visão estrutural diferente e por vezes contrária, quanto as origens e desenrolar do conflito e os seus protagonistas. E de outra maneira não poderia ser, sobretudo quando se tratava de jornalistas afectos à órgãos de comunicação portugueses.


Parte VI (ediçaõ 308)

Em Dezembro de 1998 o desfecho da guerra em Angola, tido inicialmente como uma questão de poucas semanas, voltava a cair num impasse. Fracassara a primeira investida em larga escala das FAA contra os redutos da UNITA, no Bailundo e no Andulo, ao que se seguiu uma surpreendente contra-ofensiva das FALA, travada praticamente às portas das capitais das províncias do Huambo e do Bié. Malange estava cercada. O cenário dos confrontos ganhava uma dinâmica imprevisível.

No momento em que o ano de 98 chegava ao fi m, o principal teatro da guerra civil em Angola estava localizado num triângulo formado pelas províncias do Huambo, do Bié e de Malange, no planalto central. O confl ito estendia-se depois, sob a forma de guerrilhas dispersas, para regiões distantes como o litoral de Benguela, no centro, a província da Huila, mais a Sul, e as duas Lundas, no extremo nordeste.

Desde o recomeço das hostilidades, no mês do mês de Natal, ocorriam pesados combates nos arredores de Tchicala-Tcholoanga (ex-Vila-Nova), Bimbe e Nova-Aurora, nos acessos para o Bailundo, na província do Huambo, bem como nas faixas do Kunje e Kunhinga, em direcção ao Andulo, na província do Bié. Estavam envolvidos nas escaramuças dezenas de milhares de soldados numa escalada sem precedentes. Estavam envolvidos tanques e artilharia de grosso calibre e a aviação por parte
das FAA. Após uma vantagem estratégica inicial protagonizada pelas forças da UNITA, o
exército governamental angolano conseguira restabelecer o equilíbrio, tendo logrado fazer chegar ao teatro operacional reforços em homens e logística.

Os dois beligerantes reclamavam êxito nas operações em curso. Todavia, era sintomática a falta de capacidade bélica e estratégica para permitir a qualquer dos contendores desencadear o decisivo assalto final.

AS SANÇÕES E O REARMAMENTO DO EXÉRCITO DA UNITA

Na região centro a UNITA tinha mais 20 mil homens no campo das operações. A elite dessa tropa era constituída por 3 brigadas motorizadas recémformadas e equipadas, nomeadamente: a Brigada «Nkwame Nkrumah», comandada pelo general Antero Vieira, a Brigada «Ben-Ben», chefiada pelo general Samy, e a Brigada «3 de Agosto», supervisionada pela chefi a do EMG das FALA . As unidades regulares agrupavam cada uma 5.500 homens treinados em técnicas de guerra convencional por instrutores ucranianos nas matas do Andulo. A preparação dessas unidades foi realizada longe do olhar dos fi scais da UNAVEM III, que tinham por missão supervisionar o cessar-fogo em Angola e o processo de reposição da administração do Estado nas zonas controladas pela UNITA, conforme estabelecia o Protocolo de Lusaka assinado em 14 Dezembro de 1994. Nos campos clandestinos de treinamento no Andulo e no Mungo as marcas deixadas pelas lagartas dos tanques eram apagadas pelos instruendos com ramos de árvores. Os blindados eram cuidadosamente camuflados após os exercícios.

A UNITA conseguira contornar habilmente as sanções impostas pelo Conselho de Segurança da ONU em 28 de Agosto de 1997. Fez tábua rasa às sanções adicionais, decretadas dois meses mais tarde que proibiam os seus representantes de viajarem para o estrangeiro e ordenavam o encerramento das suas representações no exterior. A liderança do movimento rebelde conseguira, graças ao provento do tráfico de diamantes, o seu principal sustentáculo fi nanceiro, penetrar numa complexa rede de contrabando de armas a partir dos arsenais do desmantelado Pacto de Varsóvia, que agrupava os soviéticos e seus aliados do leste da Europa. Para fugir ao embargo de armas imposto pelo Conselho de Segurança da ONU, a UNITA envolvera na mesma teia terceiros países e organizações internacionais especializadas no tráfi co de armas. Naquela altura o governo angolano chegou a denunciar que pessoas ligadas aos governos da Zâmbia, Burquina-Faso e Uganda estavam a ser cúmplices no rearmamento das forças militares da rebelião angolana. Entre os fornecedores incluíam-se a Bulgária e países da ex-URSS, caso da Ucrânia, onde a UNITA chegaria, inclusivamente, a recrutar instrutores militares que desembarcaram no Andulo e treinaram os soldados das FALA em tácticas de guerra convencional. O pessoal tratava esses instrutores simplesmente por «russos».

As aquisições de armamento para as forças da UNITA tinham, entretanto, começado algum tempo antes. Os primeiros lotes de material militar chegaram à base central de logística estratégica no Andulo, em fi nais de 1996. Eram provenientes do ex-Zaíre e vinham disfarçados em embalagens de roupa usada. Incluíam armas individuais de assalto «Kalashnikov», lança-foguetes RPG-7 e lançadores de granadas AGS-17 bem como bocas de morteiros de 82 mm.


«NÃO HÁ PAZ: A QUESTÃO É O PODER E PODER NÃO É PAZ»


Jonas Savimbi conseguira, de forma surpreendente, no final de 1998, equipar uma força compacta para actuar em moldes convencionais. As provas foram apresentadas no dia 20 de Abril de 2000, pela Televisão Pública de Angola, através da difusão de cassetes de vídeo capturadas durante as batalhas pela posse do Andulo. Essas imagens, fi lmadas pelos serviços de informação da própria UNITA, mostravam um ambiente frenético entre os militares antes da ofensiva. Do alto de um palanque improvisado, Savimbi falava para os soldados formados em parada no dia 12 de Novembro de 1998, num campo de treinos escondido nas matas do Andulo. Trajava um uniforme de campanha verde-olivo e no cinturão de couro castanho pendia o seu habitual «Colt» com a coronha forrada com marfim.

A manhã estava cinzenta e caía uma chuva miúda. Nenhum dos que estavam presentes dava mostrar de estar incomodado com isso. Todos pareciam extasiados com o que estava a acontecer e os olhos mantinham-se voltados para o líder que estava no palanque. J. Savimbi utilizava a sua conhecida retórica desfiando um discurso febril em língua ovimbundu. Regularmente era interrompido com «hurras» gritados pelos soldados que agitavam as suas armas novas: «(...) Isso agora vai aquecer, porque com o dinheiro dos diamantes, nós compramos material sofisticado, compramos armas modernas que terão que ir connosco até Luanda, entendido? (…) Paz? Aqui não há paz, há simplesmente a questão do poder. O problema é o poder e o poder não é paz. Agora chegou a hora de nós mandarmos, entenderam? (…) Temos de andar depressa porque vamos aquecer o país, vamos aquecer também fora das nossas fronteiras. Eles próprios, os dos Congos, nos pediram apoio e nós vamos apoiar, para amanhã pudermos cobrar dividendos quando meterem outro presidente, da nossa preferência, no Congo, que não o (Joseph) Kabila. Desta vez a nossa guerra não tem fronteiras. Vamos bater aqui e além» (sic).


«OPERAÇÃO NEGRO »: A GUERRA RELÂMPAGO

A UNITA tinha planos elaborados pelo seu comando destinados a desencadear uma guerra relâmpago usando o elemento surpresa (a ofensiva deveria iniciar a 20 de Dezembro) a fim de consumar a designada «Operação Negro». Os resultados da primeira fase consubstanciavam-se na conquista das capitais provinciais do Bié, do Huambo e de Malange. Estes deveriam ser anunciados no dia 25 de Dezembro de 1998, coincidindo com a data da fundação da UNITA.

A segunda etapa deveria ocorrer nas primeiras semanas de Janeiro de 1999, através de uma investida em direcção às regiões do litoral de Benguela. ali os alvos catalogados eram a base militar da Catumbela e o seu aeroporto, o Porto do Lobito e os reservatórios de combustível da SONANGOL, localizados na cidade do Lobito. As vias principais de acesso para esses locais estavam já sob controlo de forças de guerrilha numa extensão de centenas de quilómetros. A ousada ofensiva estava planificada para culminar com o cerco à cidade de Luanda e a deposição do governo, a exemplo do desfecho de rebeliões que ocorreram noutros locais de África. Alguns países estariam na disposição de reconhecer de imediato um governo liderado por Savimbi. Nos anos oitenta as FALA exibiram perante jornalistas e convidados estrangeiros durante um desfi le na Jamba um par de tanques soviéticos T-55 recuperados no decurso das batalhas do Cuando-Cubango. Contudo, nunca utilizara esses meios como vectores de combate directo. A introdução de tanques e a artilharia auto-propulsada de 122 mm adquiridas a partir do Andulo em 1998 constituía um elemento novo na estrutura de guerra das FALA. Estavam igualmente a ser recebidas poderosas rampas lança-foguetes múltiplos do tipo «URAGAN» ou BM-27 com capacidade de atingir alvos situados a 40 quilómetros de distância. Grosso modo, em termos qualitativos o arsenal da UNITA equiparavase ao equipamento em posse das FAA.

DEZEMBRO DE 1998: AS FAA TOMAM A INICIATIVA

As autoridades angolanas acompanhavam as pretensões urdidas a partir do Andulo. No início do mês de Dezembro de 1998 o comando das Forças Armadas Angolanas decide então tomar a iniciativa, precipitando os acontecimentos de modo irreversível. Um movimento inesperado de três regimentos das forças governamentais a partir do Huambo e do Kuito em direcção aos bastiões do Andulo e do Bailundo viria a obrigar a UNITA a envolver defensivamente as suas forças convencionais. O desdobramento apressado dessas forças despoletou um leque de problemas logísticos que viriam a condicionar a estratégia da «Operação Negro». Com efeito, a ofensiva militar do governo iniciou na primeira semana de Dezembro de 1998. Decorria em Luanda o IV Congresso do MPLA. O anúncio dos resultados da investida contra os redutos rebeldes criara um ambiente de euforia entre os congressistas do partido no poder. Devido ao avanço do exército governamental, resultaram sérios problemas estratégicos para a UNITA. Savimbi esperava efectivamente um ataque, mas não naquela altura, considerada de pouco provável, por causa das condições limitativas resultantes da época das chuvas no planalto central. O tipo de terreno por onde as FAA teriam de progredir era considerado um obstáculo natural intransponível durante o período chuvoso. Não obstante, os generais do governo montaram um posto de comando avançado na cidade do Huambo a fim de coordenar as acções. Foi arriscado um ataque simultâneo nas direcções do Bailundo pelos eixos do Chiumbo e do Andulo pelo Cunhinga. Perante a grave ameaça, Jonas Savimbi seria então forçado a meter em acção o seu exército escondido. Estavam lançados os dados.

AS BRIGADAS REGULARES DAS FALA ENTRAM EM ACÇÃO

As forças regulares da UNITA começaram a combater no dia 4 de Dezembro de 1998, munidas de um arsenal de 24 blindados de assalto BMP-2, 5 tanques T-62, 8 canhões auto-propulsados de 122 mm SAU-100 também chamados «Guvesdiga», vários canhões atreláveis D-30 de 122mm, rampas móveis de lança-foguetes BM-21, mísseis anti-aéreos SAM-16 e metralhadoras de calibre diverso, entre os quais os canhões ZU-23, uma arma anti-aérea que foi amplamente utilizada durante a guerra em Angola contra forças de infantaria. De acordo com vários depoimentos recolhidos pelo autor, os instrutores da Ucrânia não participaram directamente nos combates nem prestaram assessoria aos comandantes das unidades que treinaram. Também não foi comprovada a presença de mercenários de outras nacionalidades nas escaramuças. Registou-se um episódio que deu azo a especulações sobre a participação de combatentes estrangeiros do lado da UNITA. Os tripulantes que pereceram dentro de um blindado BMP-2 abatido pelas FAA a Norte de Vila Nova, no decurso das batalhas de Dezembro de 98, foram confundidos inicialmente por mercenários ruandeses. Rapidamente viria a apurar-se que os tanquistas da UNITA tinham combatido no Congo de Kabila e tinha sido de lá que trouxeram os uniformes camuflados, que não eram usados pela restante tropa. O exército da UNITA enquadrava entre os seus homens 30 condutores de tanques, alguns dos quais tinham pertencido as FAPLA e desmobilizados por força dos acordos de Paz assinados em Bicesse em 31 de Maio de 1991. Esses homens tinham experiência de combate com tanques, adquirida na guerra contra as SADF da África do Sul durante a década de 80. Eles foram recrutados nas suas aldeias e Savimbi os reintegraria nas brigadas que estavam a ser formadas clandestinamente.


Parte VII (edição 309)

Chegar ao Andulo, em Outubro de 1999, tinha se transformado no sonho de todos os jornalistas que cobriam a guerra em Angola. Eu tive o ensejo de ser bafejado pela sorte na manhã do dia 21. Fui o primeiro correspondente a chegar ao antigo bastião das forças militares da UNITA na sequência da sua ocupação pelas FAA, ocorrida no dia 18 de Outubro, após encarniçados combates que puseram termo à memorável «Operação

Restauro». Viajei a bordo de um «Beechcraft»-200, a primeira aeronave do governo a aterrar na localidade. Um restrito grupo de generais estava no avião, nomeadamente João B. de Matos, CEMG das FAA, Geraldo S. Nunda, Lúcio Amaral. Vinham também o comissário Panda, da PIR, e o coronel Rui, do gabinete do CEMG . Os outros ocupantes eram os dois tripulantes, dois guardas e o major Domingos Júnior, operador de imagem do EMG. Lá de cima das alturas, o Andulo era simplesmente uma extensa língua de terra avermelhada destacada entre a vegetação e o casario da vila. Voávamos à grande altitude, praticamente ocultados pelas nuvens, porquanto ainda se combatia relativamente próximo.

Os generais eram informados do decurso das acções que se desenvolviam no terreno, através de um contacto com os comandantes das unidades, com uma aparelho de transmissão terraar. A actividade militar ainda se desenrolava com relativa intensidade. A UNITA esboçava, quase desesperadamente, a intenção de contra-atacar, contudo as FAA mantinham a iniciativa no terreno afastando-a de cada vez mais.

A língua de terra vermelha que avistávamos do alto era a estratégica pista do aeroporto com mais de 3 mil metros de extensão. Repentinamente, o Bimotor picou e, em poucos metros, ficou imobilizado. Fui dos primeiros a saltar do avião, antes mesmo do segurança do general João de Matos. Dei logo de caras com o general Simione Mucune no final da pequena escada, este cumprimentou-me educadamente chamando-me pelo nome.

Mal tive tempo de responder, tinha de ganhar ângulo para conseguir registar o acontecimento extraordinário que estava a acorrer. Em plena pista do aeroporto do Andulo testemunhei e fotografei um dos momentos mais emocionantes da minha vida como repórter de guerra. Ouviam-se estrondos fortes a menos de 15 quilómetros, vindos da direcção de Nharea, que sugeriam que os combates continuavam, à medida que os contingentes das FAA empurravam as forças da UNITA para leste, para a região do rio Kuanza a fi m de encurralar os seus meios motorizados ali.

Cumprindo as regras militares, o general Simione apresentou as boas-vindas esboçando uma continência firme para o general João de Matos quando este pisou o chão, acompanhado do seu staff do EMG.: «Chefe a missão está cumprida!», informou Simione. O general Matos respondeu à saudação com o mesmo vigor: «Parabéns Simione, vocês fizeram um excelente trabalho!» Ambos os generais abraçaram-se de modo particularmente fraterno. Foi um instante único e memorável. Ainda hoje me emociona recordar aquela atmosfera incrível. Estava a fechar-se um ciclo histórico na vida do país. Matos e Simone caminharam em direcção aos comandantes das unidades que tinham entrado no Andulo e se encontravam perfi lados próximo da torre de controlo, uma construção em madeira e chapas, pintada desajeitadamente com tinta branca e vermelha em linhas horizontais.

O resto do pessoal continuou as saudações. Os generais festejavam a mais esperada vitória de todos os tempos na luta contra a ala militar da UNITA. O general João de Matos mostrava-se particularmente realizado, uma vez que dias antes, ao conceder uma entrevista, Jonas Savimbi o havia desclassifi cado como estratega militar, tratando-o por cabo do exército. A afronta estava vingada, percebia-se. O general Matos
regurgitava com isso. «Afinal quem é o cabo, ó Sr. Jornalista?», perguntou-me de forma irónica com um sorriso triunfante visivelmente
estampado no rosto.

O PASSEIO TRIUNFAL PELAS RUAS DO ANDULO NA CAMIONETA ONDE NO DIA SEGUINTE TOMBARIA O GENERAL SIMIONE

O local estava protegido por uma guarnição de blindados BMP-2 equipados com mísseis. A comitiva do CEMG das FAA, tendo o general Simione como cicerone, subiu para a carroçaria de uma camioneta de marca «Steier», a qual ali mesmo foi retirado o encerado. Foi esta viatura que 24 horas depois accionaria a mina que tirou a vida ao grande general Simione Mucune e feriria gravemente o brigadeiro Amuti, seu adjunto.

Começamos o passeio triunfal pelo Andulo. Escoltados por veículos blindados avançamos pelas ruas praticamente desertas. Avistávamos apenas uns poucos militares aqui e ali certamente recolhendo espólios. Víamos residências e estabelecimentos comerciais com aspecto de terem sido abandonados às pressas. A maior parte deles pertencia a pessoal afecto à direcção da UNITA ou a seus familiares. Numa rua de terra batida estava um carro de combate BMP-2 que, após ser atingido por um projéctil de canhão, recuaria desgovernado uns metros abalroando uma residência de adobe antes de explodir. Na antiga sede da UNITA um soldado baixou a bandeira do «galo-negro» e em seu lugar içou a bandeira da República, acto que os militares saudaram com uma continência.

O camião rolava lentamente para dar oportunidade de se inspeccionar cenário. Rumamos para o vale do rio Membia onde permanecemos algum tempo na ponte semi-destruída. Os pormenores da batalha eram pontualmente descritos pelo próprio general Simione, que tinha a seu lado o brigadeiro Amuti. Havia minas anti-carro e anti-tanque empilhadas nos dois lados do tabuleiro esburacado da ponte. Os soldados estavam a retirálas do vau alagadiço, por onde a UNITA previra que avançariam os tanques do general Simione com o intuito de aniquilá-los no momento em que tentassem a travessia para atingirem o Andulo. Houve referências sobre o perigo das minas. Numa das fotos que tirei percebe-se facilmente o general João de Matos a apontar para uma pilha desses engenhos ordenando a sua remoção imediata dos locais onde se encontravam
colocadas.

O chefe do Estado Maior General das FAA visitou todas as unidades que faziam um cordão em redor do Andulo. No hospital de Campanha o general Matos falou com os feridos, agradecendo o seu empenho durante a ofensiva militar. «Venho agradecer-vos pelo bom trabalho que realizaram, mas não podemos parar aqui, senão eles vão procurar reorganizar-se e, embora não tenham força para atacar-nos, vão fazer emboscadas nas estradas», alertou o general Matos, prometendo que dentro de pouco tempo aterraria no Andulo um avião para evacuar os feridos mais graves a fi m de receberem tratamento especializado no Hospital Militar Central.

ANDULO: A MÃE DE TODAS AS BATALHAS

Do ponto de vista estritamente operacional logo na segunda semana do mês de Outubro a situação resultante do envolvimento gradual do «bastião» a partir de vários flancos começou a pender para o lado do governo. A progressão dos regimentos e brigadas das FAA em direcção ao Andulo tinha ganho um ritmo irreversível, apesar da resistência imposta pelos contingentes das FALA em alguns sectores do vasto teatro. Na globalidade para a UNITA, a situação no terreno assumiu o rumo de uma batalha perdida, quando as forças comandadas pelo General Jorge Barros «Nguto », que se moviam no sentido Norte-Sul entre Kangandala e Mussende , atravessaram, depois de sucessivos recontros, a ponte sobre o rio Kuanza, sabotada pela UNITA, a fi m de evitar a sua utilização. Nguto e seus homens prosseguiram o avanço iniciado em Malanje, alongando-o agora para o eixo Mussende-Kalussinga. Com a artilharia pesada conseguiram alcance para fustigar os vários escalões das linhas de defesa da UNITA destroçando-as continuamente.

Das 3 linhas de ataque em direcção ao «bastião» as unidades do general Nguto eram as que possuíam equipamento mais moderno e com maior poder de fogo. A artilharia de longo alcance, sobretudo os canhões M-46, começou a fazer cair os seus projécteis nas imediações e na própria vila do Andulo causando o pânico generalizado nas hostes das FALA.

Uma tenaz de três braços ia lentamente apertando o cerco ao Andulo. Outro braço da tenaz vinha ligeiramente de Sudoeste sob comando do general José de Sousa, na direcção do Mungo e era oriunda do Bailundo, localidade tomada semanas antes. O Mungo cairia entre o dia 16 e 17 de Outubro e a progressão das FAA continuou para o rio Cutato, ameaçando o Chilesso, o que fez aumentar as atenções da UNITA
nestas duas direcções, preocupando-se menos com a ameaça vinda das forças oriundas do Kuito.

SIMIONE ATRAVESSA O RIO MEMBIA E INVESTE CONTRA O BASTIÃO

O comando das FAA decide então que assalto contra o «bastião » cabe às aguerridas forças do general Simione Mucune, que tinham avançado do Kuito e se aproximaram do Andulo no sentido Sul-Norte até à região de Cariongo, pouco antes do Vale do rio Membia, a cerca de duas dezenas de quilómetros do objectivo, e aqui fi caram sem realizar acções ofensivas de vulto, o que fez relaxar os defensores neste eixo. Foi precisamente neste local onde se esboçou o ataque decisivo. Para entrar no Andulo Simione tinha de superar um obstáculo difícil, que era o vale do Membia, pela única passagem que existia: a ponte. Esta havia sido armadilhada e estava semi-destruída por dinamite, após a UNITA ter recuado com os seus carros de combate. Dezenas e dezenas de minas estavam montadas dos dois lados da ponte ao longo do vale pantanoso, à espera dos tanques das FAA.

O plano de ataque iniciou com uma pesada preparação de artilharia por parte das forças conjugadas dos generais Simione e Nguto com peças reactivas BM-21, D-30 e M-45, e morteiros, o que garantiu uma cobertura suficiente para que as peças de tiro directo, incluindo os tanques e outros veículos blindados, assomassem ao topo do morro. Dali começaram a descer a encosta rumo à ponte, numa progressão que os deixava momentaneamente em campo aberto. Mal as ZU-23 instaladas nos «paquitos» conseguiram ângulo de tiro, começaram a fazer fogo de cobertura, protegendo os veículos que se encontravam a caminho da ponte sob um tiroteio cerrado. Com eles ia um engenho lançador de pontes TMM. No princípio da tarde do dia 18 a batalha atingira o auge e caminhava para o seu momento crucial: a travessia. Da outra margem do rio, ao longo da encosta, as forças da UNITA disparavam com todos os meios disponíveis, mas ao aperceberem-se que os atacantes se tinham aproximado
temerariamente da ponte, o pânico começou a invadir a mente dos seus soldados.

Foram lançadas pelo pessoal do TMM duas secções da ponte metálica. De imediato o primeiro tanque pesado atravessou, logo seguido de mais um. Havia que colocar rapidamente algum poder de fogo do outro lado. Depois passaram para a outra margem os blindados mais ligeiros, os BMP-2. Assim que conseguiu reunir um efectivo razoável, o general Simione Mucune mandou cessar os disparos de cobertura da artilharia de apoio e ordenou o imediato avanço para a vila, subindo a encosta em combate directo, já em plena tarde do dia 18 de Outubro de 1999, uma segunda-feira. O Andulo estava à vista e da torre do seu tanque o general Simione gritava no meio dos disparos: «Avancem por Angola meus tropas, aqui não há parar, avancem meus tropas!» Um militar das FAA de nome Paulino munido de uma câmara de vídeo VHS registou esses momentos de uma forma verdadeiramente brilhante e corajosa. Até hoje receiase que as cassetes contendo as fitas dessas filmagens únicas e que ficaram nas mãos do brigadeiro Jota, então porta-voz das FAA, se encontrem em destino incerto. Um dia falaremos sobre isso, porque o intrépido operador de câmara, após a morte do seu protector, o general Simione Mucune, ficou desamparado e hoje luta pela vida como carregador de bagagens, vulgo roboteiro, no terminal do aeroporto doméstico «5 de Fevereiro», em Luanda.

A UNITA tentaria ainda organizar uma bolsa de resistência nas imediações do aeroporto, na zona do chamado Andulo Velho, mas era para lá que avançavam as forças do general Simione, hostilizando-as com fogo dos tanques e dos BMP-2, obrigando as tropas de Savimbi a retirarem apressadamente, com a sua coesão bastante deteriorada.


Fonte: Semanário angolense Edições 303/304/305/306/307/308/309 , Fev/Março. 2009.

2 comentários:

  1. Um artigo muito interessante e mostra bem o quão doloroso foi o parto para esta nova realidade de paz, que vive Angola e todo o seu povo.

    Que todos s/ excepção aprendam c/ a história e evitem tentações políticas no futuro e que deitem abaixo aquilo que está a ser (re)feito agora, para que as gerações futuras sejam os grande beneficiados, mesmo sabendo que as profecias Bíblicas se cumprirão.

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  2. Artigo muito interessante, escrito com muita propriedade, se un dia poder dar o meu contributo, ca estarei

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