domingo, 10 de fevereiro de 2008

Memórias de um grão de joio

Uns gostam de mim, outros me detestam. Não me importo com isso. O importante é que tudo que falo é verdadeiro. Eu sou muito bom em tudo que faço, modéstia à parte. Supero todos desafios que a vida me apresenta. Não faço cara feia. Por isso, eu fui promovido à chefe da tropa de choque.

Atualmente, a minha turma é capaz de peitar e enfrentar todos os empecilhos que aparecem pela frente, sem medo nem vacilo em nenhum momento. Nunca estive nem aí com meus solertes conspiradores. Não tenho ouvidos; só mostro resultados.

Sobre as regras de boa convivência, não as entendo (interessa?). No entanto, gosto de ficar no clube do trigo. Não adianta ninguém falar contra. Na época certa, sou semeado pela ação incansável de homens destemidos ou de ventos que combatem o trigo. Não gosto de lavradores que lançam determinadas sementes escolhidas.

Na verdade, eu sou aquela erva daninha que cresce na plantação. O meu nome de batismo é lolium temulentum, mais conhecido como “jóio”. Se eu fosse do sexo feminino talvez fosse mais valorizado. Sou um dos mais altos de minha espécie. Tenho um metro de altura. A minha missão é destruir o trigo. Sou tóxico e se formos moído juntos, a farinha toda fica venenosa. Esse é o meu objetivo principal a alcançar nesta vida. Eu não me preocupo muito com ela, porque já estou com um pé na cova e outro na casca de banana.

Assim, para confundir, tento parecer trigo, mas o meu grão é de cor violeta. Por isso, muitos chamam-me de “falso trigo”. Alguns têm vindo com a conversa de “separar o joio do trigo”. Eu não sou louco! Não adianta o dono retirar-me da ceara porque o estrago que posso causar, no joio, é muito grande.

Dessa maneira, cresço lado a lado com o trigo. Eles têm que me aturar. Eu infernizo a trigarada. Assim, procuro convencer a muitos detratores meus a concordar comigo. Se a lei diz que é "branco", eu digo que é "vermelho". Faz alguma diferença? Branco e vermelho são cores e pronto. Se a sinalização diz: "siga à frente", eu digo "siga à esquerda, porque todos os caminhos vão a Roma". Isso é democrático. Democracia significa conviver com os dois lados da moeda. Caso contrário, como se poderia saber se algo é “bom” se não há uma oposição?

Quando olho para a geração dos meus pais, descubro que sou, encorpadamente, mais ardiloso. A cada dia que passa, procuro seguidores e a influenciar, ao máximo, a muitos. Tenho ambição, energia, autoconfiança, conhecimento, "know how", e vontade de liderar (Quem viver verá). Ganhamos já muita parte do terreno, principalmente para a safra deste ano.

Para que eu seja entendido, se eu fosse um ser humano, seria aquele que pisa nos travões enquanto os outros querem acelerar. Sou aquele que detesta pessoas que procuram colocar as verdades nos seus devidos lugares. Se estiver escrito: "não faça", eu escrevo: "não. Faça!". Se alguém escrever: "abaixo o joio. Não presta para a nação do trigo", eu mudo a pontuação para: "abaixo o joio? Não. Presta para a nação do trigo" (risos). Enquanto os outros choram e derramam rios de lágrimas, eu rio de lágrimas de crocodilos.

Tem mais. Sou egocêntrico. Se alguém me cumprimenta, eu não respondo. Se alguém me faz alguma pergunta, não respondo. Peço para ler as informações afixadas no quadro do "hall de entrada". Sou a favor que se instale aparelhos de TV em todas as repartições para divertir os funcionários assistindo telenovelas.

Se alguém apresentar uma boa idéia, eu proponho primeiro uma reunião. Se surgir um problema que pode incriminar um dos meus soldados, para quê existe "instauração de comissão de inquérito"?. Para cada um que busca o bom senso, eu procuro o atrito. Para o grupo que preza pelo progresso e ordem, eu intrigas. Para cada um que vê soluções, eu vejo problemas. Para cada um que, numa corrida de atletismo, com foco, ensaia uma fuga do pelotão de elite, para não levar vantagem, eu disparo contra ele. O momento é de criar confusão.Para mim, quanto pior, melhor!.

Em suma, eu sou anti-são-franciscano. Sou instrumento da confusão. Onde há amor, eu levo ódio; onde há perdão, eu levo a ofensa; onde há união, eu levo a discórdia; onde há alegria, eu levo a tristeza; onde há verdade, eu levo o erro. Onde há alguém plantando, destruo. Onde há pessoas tentando, com dificuldades, erguer alguma coisa útil e válida, eu vou lá, bato o pau, derrubo e vira tudo lixo. Assim, seremos todos farinha do mesmo saco.

Por Feliciano J.R. Cangüe

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