Como sempre acontece no nosso país, a realidade suplantou a teoria. As tristes histórias de Benguela e da Huíla vieram demonstrar que as eufóricas declarações sobre a terceira República não passaram de meras elucubrações dos políticos. Por ocasião da aprovação da Constituição ouvimos algumas das vozes do debate público ‹‹prenhas›› de um fantástico entusiasmo como se a lei magna fosse em si a varinha mágica. Alguns falaram até de uma grande revolução só comparável ao momento da independência. Volvidos menos de três meses, têm todos eles a resposta que mereciam. A prática, o dia-a-dia, a acção humana demonstra que as mudanças não se fazem por decreto. Mais: Lubango e Benguela mostraram que há gente que faz absoluta tábua rasa da constituição. ‹‹Estão nem aí››, diriam os brasileiros. Nada mudou. Quem leia alguns artigos da Constituição ainda que, absolutamente leigo como nós, não pode deixar de reconhecer a clareza de alguns postulados. Se nos socorrermos também de entrevistas dadas por alguns especialistas, como o Dr. Raul Araújo, formamos rapidamente a convicção de que não assiste aos governos o direito de proibir manifestações, nem de silenciar, censurar órgãos de comunicação nem de desalojar cidadãos sem a observância dos seus direitos.
Agrava todas essas ocorrências a circunstância de se processarem à contra mão de um processo político que se pretendia estabelecer como o passo decisivo para uma nova Angola. Houve claramente no discurso apologético da nova Constituição uma mensagem subliminar da nova Angola, mais responsável para com os direitos dos cidadãos, mais aberta à comunicação social e à liberdade de imprensa, mais responsável e menos arrogante na gestão do bem público. Tudo isso vai por terra, ainda que não seja de forma irreversível. Mas vai tudo por terra porque afinal tanto oba-oba e está tudo na mesma. Vai por terra também porque afinal quem mesmo assim viola ostensivamente a lei tem a protecção, velada ou não, dos seus camaradas, excepção feita ao MPLA da Huíla que se demarcou e ficou muito, mas muito bem mesmo na fotografia.
Na confiança dos cidadãos que sempre foi pouca, os acontecimentos de Benguela e da Huíla representaram, na verdade, cinco passos atrás em termos de esperança. Todos querem uma Angola sem esse tipo de abusos, com um estilo novo de resolver os problemas e, de certo modo, mesmo divergindo nalguns pontos, todos tínhamos a esperança de que a terceira República significasse um momento de viragem. E por isso, os discursos que falaram da viragem foram tão aplaudidos.
Eis que levamos todos um murro no estômago e ficamos abismados não só com o que se fez mas com o desplante como em público ainda se defende o absurdo. Afinal, a terceira República não entrou mesmo porque o se se aplicasse tolerância zero contra os autores de abusos não haveria necessidade de explicar mais Constituição nenhuma. Seria a prática pela prática. À prática de desobedecer à lei e da administração arrogante responder-se-ia com a lei constitucional e com a terceira República, obrigando a quem abusa e viola a lei a retratar-se, a concertar os sarilhos ou a ir para casa tratar dos bens privados.
Todos sabemos que isso não vai acontecer e os deputados da Assembleia Nacional vão andar de conferência em conferência a explicar o quão bonito foi o seu trabalho de legislador, quando agora, o momento de agora, é de prática, acções práticas, respostas práticas perante a prática de fazer tábua rasa da Constituição, da novíssima Constituição que nem três meses tem.
Não nos interessa mais entrar na discussão imediata. Para nós, o essencial é conseguirmos levar o governo e as entidades fiscalizadoras a actuarem em defesa da Constituição. Depois da fragmentação que o debate da Constituição criou na sociedade, o pior que poderia acontecer é vermos reabrir a discussão sobre a eficácia da lei magna. O pior é vermos instalar o descrédito geral quando a prática destes dias nos mostra que diga lá o que a lei disser, se for necessário censurar, censura-se, se for necessário despejar sem qualquer negociação, despeja-se e se for necessário proibir manifestações, proíbe-se mesmo. Não há lei que vingue se cada um continuar a fazer a sua própria lei ou a ver a lei segundo as suas conveniências. Se a Lei Constitucional era de certo modo ambígua em relação a casos como os ocorridos, a nova Constituição não podia ser mais clara. Sobre as manifestações por exemplo, o art. 47 assegura que é garantida a todos os cidadãos a liberdade de reunião e de manifestação pacífica e sem armas, sem necessidade de qualquer autorização e nos termos da lei detalhando que, no caso dessas reuniões e manifestações ocorrerem em lugares públicos, elas devem ser antecedidas de uma comunicação à autoridade competente. Ora confundir comunicação com pedido de autorização é mera manipulação. O mesmo se aplica aos casos da comunicação social e da expropriação dos cidadãos. A lei magna é claríssima.
O outro aspecto é a celeridade da justiça. A procuradoria não deve defender os governadores mas o Estado. Toda a acção administrativa ilegal segundo a actual Constituição pode representar altos custos para a imagem e para os bolsos do Estado. De acordo com o art. 75, o Estado e outras pessoas colectivas públicas são solidária e civilmente responsáveis por acções de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para o titular destes ou para terceiros. A procuradoria como defensora do Estado deveria ser a primeira a solicitar providências cautelares aos tribunais nos casos em que medidas administrativas fossem susceptíveis de, mais tarde, dar lugar a indemnizações ou processos onerosos contra o Estado. Os próprios tribunais deveriam ter a capacidade para sumariamente analisar casos em que houvesse claramente um diferendo entre os cidadãos e as autoridades.
É preciso, portanto, preparar as pessoas para a nova realidade constitucional, nomeadamente ensinando a sociedade a não claudicar da defesa dos seus direitos, a administração pública a passar a respeitar mais os cidadãos para os quais trabalha e a justiça a não se fazer de surda, muda e morta sempre que a sociedade se agita. A nossa justiça tem um medo terrível de decidir sobretudo quando estão envolvidos graúdos. É um caminho logo que passa desde já pelo primeiro passo da autoridade central não esconder a cabeça na areia e não pactuar com violações à Constituição.
Se houver coragem para esse primeiro passo, tudo o resto será doravante mais fácil. Há coragem para isso? ■
Fonte: Semanário Angolense: Voto na Matéria
EDIÇÃO 360 · ANO VII Sábado 27 de Março de 2010
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