domingo, 14 de fevereiro de 2010

Bons discursos, mas atrasados no tempo - Ismael Mateus


Por Ismael Mateus

"Data de corte? Queremos exemplos concretos. Queremos cabeças que rolem, gente graúda a ser levada a tribunal, erros a serem denunciados, queremos que os escândalos denunciados pela sociedade sejam investigados e corrigidos"

Nos últimos tempos o presidente José Eduardo dos Santos tem feito bons discursos. São discursos que se ajustam ao que a opinião pública e a sociedade têm pedido há anos.

Qual é então o problema? Por que razão os discursos do JES não conseguem uma mobilização maior da sociedade?

A resposta é simples. Os discursos estão atrasados no tempo. Embora traduzam uma vontade que ao longo de anos foi manifestada, hoje as expectativas da sociedade já são outras. Hoje os cidadãos já não se satisfazem apenas com boas intenções e promessas. Querem acções, exemplos práticos e provas palpáveis do esforço de mudança que se diz nas promessas e discursos. Há, em consequência, um desajustamento entre o conteúdo dos discursos e a expectativa dos cidadão. Há cinco ou seis anos com discursos desses teríamos todos exultado de alegria, talvez até saíssemos em passeatas para comemorar uma data de corte, a tolerância zero ou todas as outras promessas que vêm sendo feitas. Nos dias de hoje, nada disso nos entusiasma. Palavras leva-as o vento.

Para que, de facto, haja uma data de corte é importante que o governo tenha a coragem de mandar investigar, suspender os actos de duvidosa transparência ou susceptíveis de ofender a moral pública. Em Cabinda, Mawete João baptista deu um exemplo que é de aplaudir. Mandou recolher casas, carros e outros bens de que alguns dos membros do governo provincial se haviam apropriado. Se quiser realmente estabelecer uma data de corte, o governo central não tem outro caminho senão dar mostras clara de ruptura com o passado e acabar com a suspeição geral de cumplicidade.

Para que haja uma data de corte é fundamental mudarem-se os hábitos de relacionamento com os cidadãos. É fundamental corrigirem-se os erros do passado que deixaram mágoas. A imprensa tem falado de casos graves relacionados com os dinheiros do CAN, com os mandatos e a gestão do Tribunal de Contas, gestão e situação financeira da RNA e da TPA ou de supostas prisões em Luanda. Mais do que discursos, o governo deveria mandar a Procuradoria- Geral da República investigar seriamente cada um desses casos ou deveria orientar os ministros para que se prestasse uma devida informação ao cidadão, evitando os rumores e o sentimento de que o país está envolto num manto de impunidade, corrupção e compadrio. Uma nova mentalidade seria, na verdade,adoptar-se uma atitude diferente de enfrentar esses casos com coragem, firmeza e braço de ferro. É isso a tolerância zero.

Outro sinal de desfasamento é o facto do governo minimizar (ao não assumir claramente esse problema) os efeitos dos erros cometidos com a promoção de bajuladores e incompetentes. A nossa vida social e pública está profundamente marcada pela hipocrisia. A qualidade do servidor público, que o presidente referiu, está intrinsecamente ligada ao facto dos responsáveis terem optado por ter ao seu lado mais pessoas de confiança pessoal (leia-se obedientes,admiradores e fieis) do que pessoas com competência técnica. Aos poucos vemos entrar no governo gente respeitada tecnicamente nas suas áreas, mas isso tem de ser alargado às direcções intermédias, que aí é que se preparam as boas decisões. Se se pretende estabelecer uma data de corte então é preciso a esse nível, intermédio, denunciar as pessoas que ainda há dias diziam hossanas e aleluias aos antigos ministros e agora andam pelos corredores a chamar-lhes os piores nomes. É preciso demitir todos os outros que pactuaram com os roubos, com as decisões negligentes e negócios obscuros e que agora fingem que nada sabiam nem concordavam. Tolerância zero é ter coragem de enfrentar a verdade, cumprir a constituição que diz que todos são iguais perante a lei e acabar com a gestão através da intriga, acabar com os pára-quedistas que invadem as empresas públicas eos ministérios.

Na semana da data de corte, largas centenas de exemplares do Semanário Angolense foram recolhidos pela Policia. É aceitável isso? Como não resultou a estratégia da asfixia do jornal pela via da diminuição da publicidade, alguém decidiu ‹‹cumprir a constituição›› afastando o jornal dos leitores. Enquanto a classe média luta arduamente no dia a dia contra todas as adversidades, o nosso novo-riquismo esbanja dinheiro vindo do Estado em excentricidades, gaba-se na revista cor de rosa do seu sucesso repentino e meteórico. E não há outro caminho senão engolir esses sapos. Quando haverá data de corte para isso?

Mesmo o discurso do presidente JES trazia uma reveladora prova de que a mentalidade do próprio governo não mudou. Perante tantas reclamações de oportunidades dadas a estrangeiros, se houvesse uma data de corte, governo não teria assinado um acordo com uma empresa de consultoria estrangeira mas antes com uma angolana. Essa sim teria um caderno de encargos a cumprir, seria obrigada a subcontratar técnicos de maior qualidade e teria um fiscalização atenta. O governo não consegue esconder a admiração, diríamos mesmo uma doentia atracção, por tudo que é estrangeiro. Contrata os estrangeiros justificando-se com a falta de experiência dos angolanos. Cada vez mais achamos que alguns dirigentes acreditam piamente que o modo dos angolanos passarem a ter experiência não é conseguindo contratos exigentes mas antes fazendo com que esses estrangeiros experientes passem a ser administrativamente angolanos. É o que está a acontecer. Uma data de corte deveria implicar uma mudança radical dessa visão perigosa para o futuro. No passado o discurso oficial dizia que ao lado de um cooperante deveriam estar dois angolanos mas hoje a prática demonstra, de modo reiterado, que quando se pretende que algo corra bem contrata-se um estrangeiro. Uma data de corte era potenciar realmente as empresas angolanas e acabar com o preconceito ‹‹oficial e governamental›› de que nada de bom se pode fazer com angolanos. Deveriam ser as empresas angolanas a subcontratar ou a contratar mão de obra qualificada, seja pedreiros chineses, consultores britânicos ou jornalistas portugueses. Infelizmente a realidade é outra como mostra o exemplo da Ernest and Young.

Queremos exemplos concretos. Queremos cabeças que rolem, gente graúda a ser levada a tribunal, erros a serem denunciados, queremos que os escândalos denunciados pela sociedade sejam investigados e corrigidos. Queremos que o governo seja uma entidade de bem que pague quando tem de pagar, que não acumule dívidas às empresas angolanas, que pague os salários e que seja justo. Não podemos falar de uma data de corte se depois uns compram aviões, empresas em Portugal e quintas no Chile com dinheiro que só Deus sabe donde vem, e outros moram no Zango com os filhos a terem de dormir em cima da mesa porque chove sobre a rota tenda de lona. Não podem uns usar o Estado ou contornar as leis e outros sem sequer puderem fazer uma manifestação de protesto ou usar o seu direito cidadão sem sofrer consequências na sua vida. Data de corte é dar os primeiros passos para essa longa caminha. Os discursos ainda não são passos. São só a intenção de dar os passos. Estamos à espera que os primeiros passos sejam dados. Aí sim, quando forem dados todos veremos uma sintonia, uma esperança, uma satisfação nos rostos angolanos. Até lá…vamos estando nas calmas. ■

SA, EDIÇÃO 354, 13 de Fevereiro de 2009

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