Por Ismael Mateus
Luanda - Pouca gente percebe porque razão o mesmo MPLA, que opera mudanças na economia ou nas infra-estruturas, demonstre tanta dificuldade em adoptar práticas mais democráticas na sua acção politico- partidário e governamental. O que se passa afinal? O que realmente impede o MPLA de se democratizar mais e democratizar mais a sociedade?
Não basta existirem partidos políticos ou jornais privados. Não basta termos instituições formais. É preciso mudar a mentalidade de partido único e implantar, a todos os níveis, uma cultura da diversidade. Diversidade de opinião, de pensamento, de acção, de formas de ver os problemas e o país. É essa cultura da diversidade que gera uma disputa qualificada, propostas de governo, leis e decisões mais qualificadas que, por sua vez, geram também dirigentes de melhor qualidade. Algumas pessoas falam da falta de cultura democrática dos dirigentes do MPLA mas, para nós, esse é um argumento frágil.
Do topo à base, o partido está recheado de quadros competentes e genuinamente democráticos. Muitos deles também têm dificuldade em compreender a dificuldade de adopção de práticas que levem a uma maior liberdade do pensamento, a debates sobre a ideologia e a práticas mais modernas. Ninguém compreende o unanimismo, a não eleição por voto secreto, a ausência de múltiplas candidaturas e a ausência de correntes de opinião. É uma democracia à MPLA, sem uma disputa eleitoral interna clara, transparente e livre. Quando hoje os partidos já falam em voto directo dos militantes, em disputas primárias e eleição electrónica, a ‹‹democracia interna›› baseada no bilhetinho, na indicação superior e no braço no ar remete o maioritário a um estágio rudimentar de evolução democrática, o que acaba por se reflectir, naturalmente, na sua condução do país.
Algumas das acções do MPLA são mesmo de um atraso quase pré-históricas e aprisionam o país a essa democracia rudimentar. Os comités de especialidade, por exemplo. A sua existência subordina o saber técnico e os interesses da classe profissional à vontade política. Através deles, um médico, um engenheiro ou um jornalista não precisa, mesmo para representação da classe, de ser reconhecido pelos seus pares. Pode até nem ser conhecido pelos seus colegas. Entra em cena o comité do MPLA que, pela sua militante e só por isso, faz desse médico, engenheiro ou jornalista um líder ou representante de uma classe que não o conhece nem reconhece como um dos seus melhores técnicos. Torna-se um técnico de grandeza e competência reconhecidas por militância. São esses médicos do partido, engenheiros do partido, jornalistas do partido e generais do partido, que dirigem o país no topo e a nível intermédio. Os resultados em termos de competência profissional estão à vista.
Nomear os reitores das universidades, quando já se instalava uma cultura do voto nos meios académicos, não é antidemocrático, tal como não é votar com o braço no ar no grupo parlamentar. Mas reconheçamos que alguém que queira assumir um cargo académico necessita de autonomia de pensamento e liberdade académica. A nomeação política dos reitores é, à partida, um condicionamento dessa autonomia. Quem quiser, merecidamente, chegar a reitor não precisa mais de fortalecer a sua carreira ou apresentar um projecto académico inovador que conquiste o respeito e o eleitorado. Agora, basta circular pelos andares do Kremlim, inscrever-se num comité de especialidade e esperar cair nas graças do secretário de Estado. O MPLA retrocedeu aos tempos da nomeação política, colocando os reitores à mercê, outra vez, do aval político e, de uma forma mais presente, condicionando a liberdade académica. A competência de avaliar o mérito e a qualidade do candidato deixa de pertencer à academia e passa a ser da alçada discricionária de um político.
É um óbvio retrocesso do processo democrático. Nada disso tira o mérito pessoal de muitos dos nomeados nem a certeza de que muitos deles vão fazer um excelente trabalho. Mas mesmo esses, fazendo ou não bom trabalho, viverão com uma espada política sobre as suas cabeças. Uma entrevista menos conseguida, uma opinião técnica menos simpática ou até a má disposição de um político pode custar-lhes o cargo. Não tarda vão começar a aparecer as teses sobre os discursos ou sobre o papel visionário deste ou daquele, os prémios honnoris causa e as moções de apoio e agradecimento aos governantes. Por outras palavras, mesmo que alguém ascenda por mérito, isso não é uma conquista directa e pessoal mas sim por interposta pessoa do mesmo modo que o não ter mérito nada importa se essa pessoa entender elevar alguém à categoria de reitor. Quanto isso vai custar ao país? Que repercussões teremos disso ao nível da qualidade das insti-tuições e do ensino?
Os primeiros secretários do MPLA foram indicados pelo secretariado do Bureau Politico. O vice-presidente da República vai ser indicado. O presidente da JMPLA, que é o viveiro do partido maioritário, foi indicado e foi candidato único e de preferência oriundo da mesma região do seu antecessor. E assim por força desta prática não há dirigente intermédio que possa reclamar legitimidade própria conquistada pelo voto. Todos têm uma instrumental dependência das estruturas superiores. É assim que se garante o unanimismo. Quem se atreve a estar em desacordo sabe que a sua futura nomeação passa a não estar garantida e o seu nome deixa de constar entre os indicáveis, seja para o que for. É um estado clientelar, é verdade, mas, mais do que isso, é um caminho para o totalitarismo. Já temos um culto de personalidade de tal ordem que se confundem símbolos do país com caras de pessoas.
A inclusão de caras, sejam elas de quem for, num documento pessoal dos cidadãos, num documento de futuro e de união dos angolanos mostra a cegueira que se vai instalando. Olhemos para a história mundial. Este é um filme que já vimos a acontecer, tal e qual, até com os movimentos patrióticos de defesa dessas ideias. Estamos com indícios que nos podem levar a um estado ‹‹democrático›› totalitarista, um único partido, um único pensamento, uma única forma de ver a vida e os problemas. A persistente manipulação da imprensa pública, o acesso condicionado a quem não seja do sistema; o uso do voto democrático para a concentração e acumulação de poderes individuais são sintomas sérios que devem ser lidos com a devida atenção. Até algumas respostas às críticas parecem as mesmas. Nalguns casos da história mundial recente, quando eram feitas críticas à falta de democracia, os governantes respondiam apontando para o número de obras que se erguiam. Não é que elas não existam, mas parecenos um exagero dar exemplos de estradas quando se fala de liberdade de pensamento e correntes ideológicas.
As tristes novelas da liberdade condicional de Fernando Miala e da pressão à Luísa Rogério, só para citar estes, demonstram que nem mesmo a justiça consegue fugir ao receio de não agradar ‹‹às estruturas superiores››. Os grupos de grande credibilidade na sociedade - como os juristas e os professores universitários - estão a prestar um péssimo serviço ao país. Esses juristas e professores universitários funcionam como os coveiros da democracia. Alguém a mata brutalmente, mas são eles (sobretudo os mais jovens, aspirantes a qualquer coisa e a qualquer preço) quem vêm retocar o cadáver, até parecer que foi uma morte natural, necessária e feliz. Sabem que assim os seus nomes passam a figurar entre os indicáveis. É o tal viveiro de que se fala na Jota e fora dela.
Na economia, o quadro é o mesmo. Com o aval do sistema, alguns escolhidos fizeram-se grandes empresários. Uns têm o bom senso de reinvestirem no país, darem empregos a angolanos e contribuírem para o crescimento do país. Outros nem isso. Resolvem insultar-nos a todos ao usarem o nosso dinheiro, que lhes foi parar às mãos sem qualquer mérito, para contratarem estrangeiros sem qualquer valia técnica e pessoal. Ninguém discute tais coisas no MPLA. Nem a origem da riqueza nem o compromisso com a economia nacional. Nem sequer o papel, diríamos até a obrigatoriedade moral de formar gente nossa, trabalhar com angolanos e possibilitar e gerar mais riqueza a outros angolanos.
Felizes da vida, vamos construindo pedra a pedra o nosso Estado democrático totalitário que, como em muitas coisas, é uma criação nossa, tal como a mentalidade do silencio ‹‹xe menino, não fala política››. Depois dos intelectuais, dos juristas, dos jornalistas, dos professores universitários e dos magistrados, só falta a igreja acreditar e nos fazer acreditar que essa democracia rudimentar é abençoada por Deus. É preocupante ver já tantas igrejas e tantas mensagens de elogio e o uso dos púlpitos para agradecimentos e elogios ao governo. Parece que alguns lideres morais começam também a sentir a necessidade de elogiar, agradar para que as estruturas superiores concedam mais apoios, mais terrenos e mais atenção às igrejas. O problema não é obviamente o elogio, mas a falta de críticas quando há críticas a fazer e a eventualidade do recurso ao elogio para possíveis benesses do Estado. É um caminho sinuoso.
Será mesmo isso que nós queremos para o nosso país?
Fonte:Semanário angolense. EDIÇÃO 339 · ANO VII, Sábado, 24 de Outubro de 2009.
Luanda - Pouca gente percebe porque razão o mesmo MPLA, que opera mudanças na economia ou nas infra-estruturas, demonstre tanta dificuldade em adoptar práticas mais democráticas na sua acção politico- partidário e governamental. O que se passa afinal? O que realmente impede o MPLA de se democratizar mais e democratizar mais a sociedade?
Não basta existirem partidos políticos ou jornais privados. Não basta termos instituições formais. É preciso mudar a mentalidade de partido único e implantar, a todos os níveis, uma cultura da diversidade. Diversidade de opinião, de pensamento, de acção, de formas de ver os problemas e o país. É essa cultura da diversidade que gera uma disputa qualificada, propostas de governo, leis e decisões mais qualificadas que, por sua vez, geram também dirigentes de melhor qualidade. Algumas pessoas falam da falta de cultura democrática dos dirigentes do MPLA mas, para nós, esse é um argumento frágil.
Do topo à base, o partido está recheado de quadros competentes e genuinamente democráticos. Muitos deles também têm dificuldade em compreender a dificuldade de adopção de práticas que levem a uma maior liberdade do pensamento, a debates sobre a ideologia e a práticas mais modernas. Ninguém compreende o unanimismo, a não eleição por voto secreto, a ausência de múltiplas candidaturas e a ausência de correntes de opinião. É uma democracia à MPLA, sem uma disputa eleitoral interna clara, transparente e livre. Quando hoje os partidos já falam em voto directo dos militantes, em disputas primárias e eleição electrónica, a ‹‹democracia interna›› baseada no bilhetinho, na indicação superior e no braço no ar remete o maioritário a um estágio rudimentar de evolução democrática, o que acaba por se reflectir, naturalmente, na sua condução do país.
Algumas das acções do MPLA são mesmo de um atraso quase pré-históricas e aprisionam o país a essa democracia rudimentar. Os comités de especialidade, por exemplo. A sua existência subordina o saber técnico e os interesses da classe profissional à vontade política. Através deles, um médico, um engenheiro ou um jornalista não precisa, mesmo para representação da classe, de ser reconhecido pelos seus pares. Pode até nem ser conhecido pelos seus colegas. Entra em cena o comité do MPLA que, pela sua militante e só por isso, faz desse médico, engenheiro ou jornalista um líder ou representante de uma classe que não o conhece nem reconhece como um dos seus melhores técnicos. Torna-se um técnico de grandeza e competência reconhecidas por militância. São esses médicos do partido, engenheiros do partido, jornalistas do partido e generais do partido, que dirigem o país no topo e a nível intermédio. Os resultados em termos de competência profissional estão à vista.
Nomear os reitores das universidades, quando já se instalava uma cultura do voto nos meios académicos, não é antidemocrático, tal como não é votar com o braço no ar no grupo parlamentar. Mas reconheçamos que alguém que queira assumir um cargo académico necessita de autonomia de pensamento e liberdade académica. A nomeação política dos reitores é, à partida, um condicionamento dessa autonomia. Quem quiser, merecidamente, chegar a reitor não precisa mais de fortalecer a sua carreira ou apresentar um projecto académico inovador que conquiste o respeito e o eleitorado. Agora, basta circular pelos andares do Kremlim, inscrever-se num comité de especialidade e esperar cair nas graças do secretário de Estado. O MPLA retrocedeu aos tempos da nomeação política, colocando os reitores à mercê, outra vez, do aval político e, de uma forma mais presente, condicionando a liberdade académica. A competência de avaliar o mérito e a qualidade do candidato deixa de pertencer à academia e passa a ser da alçada discricionária de um político.
É um óbvio retrocesso do processo democrático. Nada disso tira o mérito pessoal de muitos dos nomeados nem a certeza de que muitos deles vão fazer um excelente trabalho. Mas mesmo esses, fazendo ou não bom trabalho, viverão com uma espada política sobre as suas cabeças. Uma entrevista menos conseguida, uma opinião técnica menos simpática ou até a má disposição de um político pode custar-lhes o cargo. Não tarda vão começar a aparecer as teses sobre os discursos ou sobre o papel visionário deste ou daquele, os prémios honnoris causa e as moções de apoio e agradecimento aos governantes. Por outras palavras, mesmo que alguém ascenda por mérito, isso não é uma conquista directa e pessoal mas sim por interposta pessoa do mesmo modo que o não ter mérito nada importa se essa pessoa entender elevar alguém à categoria de reitor. Quanto isso vai custar ao país? Que repercussões teremos disso ao nível da qualidade das insti-tuições e do ensino?
Os primeiros secretários do MPLA foram indicados pelo secretariado do Bureau Politico. O vice-presidente da República vai ser indicado. O presidente da JMPLA, que é o viveiro do partido maioritário, foi indicado e foi candidato único e de preferência oriundo da mesma região do seu antecessor. E assim por força desta prática não há dirigente intermédio que possa reclamar legitimidade própria conquistada pelo voto. Todos têm uma instrumental dependência das estruturas superiores. É assim que se garante o unanimismo. Quem se atreve a estar em desacordo sabe que a sua futura nomeação passa a não estar garantida e o seu nome deixa de constar entre os indicáveis, seja para o que for. É um estado clientelar, é verdade, mas, mais do que isso, é um caminho para o totalitarismo. Já temos um culto de personalidade de tal ordem que se confundem símbolos do país com caras de pessoas.
A inclusão de caras, sejam elas de quem for, num documento pessoal dos cidadãos, num documento de futuro e de união dos angolanos mostra a cegueira que se vai instalando. Olhemos para a história mundial. Este é um filme que já vimos a acontecer, tal e qual, até com os movimentos patrióticos de defesa dessas ideias. Estamos com indícios que nos podem levar a um estado ‹‹democrático›› totalitarista, um único partido, um único pensamento, uma única forma de ver a vida e os problemas. A persistente manipulação da imprensa pública, o acesso condicionado a quem não seja do sistema; o uso do voto democrático para a concentração e acumulação de poderes individuais são sintomas sérios que devem ser lidos com a devida atenção. Até algumas respostas às críticas parecem as mesmas. Nalguns casos da história mundial recente, quando eram feitas críticas à falta de democracia, os governantes respondiam apontando para o número de obras que se erguiam. Não é que elas não existam, mas parecenos um exagero dar exemplos de estradas quando se fala de liberdade de pensamento e correntes ideológicas.
As tristes novelas da liberdade condicional de Fernando Miala e da pressão à Luísa Rogério, só para citar estes, demonstram que nem mesmo a justiça consegue fugir ao receio de não agradar ‹‹às estruturas superiores››. Os grupos de grande credibilidade na sociedade - como os juristas e os professores universitários - estão a prestar um péssimo serviço ao país. Esses juristas e professores universitários funcionam como os coveiros da democracia. Alguém a mata brutalmente, mas são eles (sobretudo os mais jovens, aspirantes a qualquer coisa e a qualquer preço) quem vêm retocar o cadáver, até parecer que foi uma morte natural, necessária e feliz. Sabem que assim os seus nomes passam a figurar entre os indicáveis. É o tal viveiro de que se fala na Jota e fora dela.
Na economia, o quadro é o mesmo. Com o aval do sistema, alguns escolhidos fizeram-se grandes empresários. Uns têm o bom senso de reinvestirem no país, darem empregos a angolanos e contribuírem para o crescimento do país. Outros nem isso. Resolvem insultar-nos a todos ao usarem o nosso dinheiro, que lhes foi parar às mãos sem qualquer mérito, para contratarem estrangeiros sem qualquer valia técnica e pessoal. Ninguém discute tais coisas no MPLA. Nem a origem da riqueza nem o compromisso com a economia nacional. Nem sequer o papel, diríamos até a obrigatoriedade moral de formar gente nossa, trabalhar com angolanos e possibilitar e gerar mais riqueza a outros angolanos.
Felizes da vida, vamos construindo pedra a pedra o nosso Estado democrático totalitário que, como em muitas coisas, é uma criação nossa, tal como a mentalidade do silencio ‹‹xe menino, não fala política››. Depois dos intelectuais, dos juristas, dos jornalistas, dos professores universitários e dos magistrados, só falta a igreja acreditar e nos fazer acreditar que essa democracia rudimentar é abençoada por Deus. É preocupante ver já tantas igrejas e tantas mensagens de elogio e o uso dos púlpitos para agradecimentos e elogios ao governo. Parece que alguns lideres morais começam também a sentir a necessidade de elogiar, agradar para que as estruturas superiores concedam mais apoios, mais terrenos e mais atenção às igrejas. O problema não é obviamente o elogio, mas a falta de críticas quando há críticas a fazer e a eventualidade do recurso ao elogio para possíveis benesses do Estado. É um caminho sinuoso.
Será mesmo isso que nós queremos para o nosso país?
Fonte:Semanário angolense. EDIÇÃO 339 · ANO VII, Sábado, 24 de Outubro de 2009.
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